Por trás da mudança de hábito — Gama Revista
© Ayesh Rathnayake

Por trás da mudança de hábito

Em tempos de futuro incerto, a reabertura gradual nos faz, mais uma vez, modificar nossas rotinas. Como lidar de forma sensata com a fadiga da quarentena — e com a festa no vizinho?

Willian Vieira 07 de Agosto de 2020

Foi tudo muito rápido: da noite para o dia, a pandemia nos fez mudar radicalmente os hábitos, com a imposição do isolamento social, de novas normas de higiene — um mundo de incertezas futuras virou o novo normal. Até que a reabertura gradual entrou em curso, mesmo a despeito das mortes em alta no Brasil. Assim, uma nova mudança de rotina se pôs em marcha, dessa vez sem diretrizes claras e consensuais. O que impede um debate aberto sobre como enfrentar a quarentena de forma realista. “Enquanto isso, existe uma maioria silenciosa que não participa do fogo cruzado e que, às escondidas, na falta de diretrizes, está tomando as próprias decisões”, diz o psiquiatra Arthur Danila, que coordena o Programa de Mudança de Hábitos e Estilo de Vida (PRO-MEV) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. Seu trabalho no ambulatório é justamente orientar as pessoas a criarem novas rotinas de forma sustentável. Na ausência de um debate nacional, diz, é preciso saber planejar as mudanças de comportamento para conseguir mantê-las. Afinal, elas vieram para ficar — ao menos por um bom tempo.

Existe uma maioria silenciosa que não participa do fogo cruzado e que, às escondidas, na falta de diretrizes, está tomando as próprias decisões

  • G |A pandemia exigiu uma grande mudança de hábitos. Com a reabertura atual, exige-se algo similar, só que ainda mais às escuras. Como reagir em meio a esse vai e vem?

    Arthur Danila |

    Toda mudança de comportamento pressupõe um planejamento. E isso é o mais difícil: criar uma estratégia planejada para aumentar suas chances de sucesso na mudança. Muita gente quer realmente efetivar mudanças na vida, mas a estratégia é errada, então ocorre o insucesso, a frustração — e logo uma menor chance de se tentar novamente. Agora, estamos diante de uma situação de pandemia na qual comportamentos devem ser modificados, e não só no âmbito individual. E o engajamento não será homogêneo: alguns estarão mais dispostos do que outros a se adequar às novas necessidades — e isso em parte devido à ausência de uma política pública clara que determine um norte, uma diretriz nacional que possa ser seguida por todos. A mídia tem feito esse papel, de passar um comportamento modelo. Mas a mídia não é o governo. Então não temos hoje quem dê subsídios para que isso seja respeitado, que nos ajude a trilhar o melhor caminho em meio à adversidade. Quando vemos o governo eleito patinando, cada um se sente no direito de decidir sozinho, mesmo em contraponto ao que seria o melhor caminho socialmente.

  • G |Há dois discursos em vigor: um que prega a quarentena total, outro que a ignora. Essa dicotomia é realista?

    AD |

    Acho que isso remonta à questão política dos extremismos. Falta ao país lideranças moderadas, um papel de moderação político, então vivemos uma sociedade muito polarizada. E isso não se restringe à política, se reflete na sociedade como um todo. Então tem o bolsonarismo, que diz que é só uma gripezinha. E tem quem defenda a quarentena ipsis literis, o lockdown, com imposição total do governo sobre o ir e vir. A ausência da discussão moderada impede um debate mais aberto. Imagina, se você trouxer a discussão sobre as bolhas sociais [regra posta em prática em países como a Bélgica em que só é liberado encontrar um número restrito e fixo de pessoas], isso seria rechaçado por ambas as partes. Parece que não existe uma entrada para uma visão mais moderada sobre o que dá para ser feito. Porque, na realidade, até que tenhamos a vacina, nós continuaremos nessa situação. Atingimos o platô, achatamos a curva, de modo a não colapsar o sistema de saúde, mas poderíamos, em vez disso, reduzir o número de casos se houvesse uma aderência maior como sociedade. Se tivéssemos estratégias mais razoáveis, poderíamos até implantar algo do tipo. Mas a falta de moderação impede que se ventile essas propostas.

  • G |O que seria a tal da “fadiga de quarentena”?

    AD |

    A fadiga de quarentena envolve o cansaço da restrição à liberdade de ir e vir, que é da natureza humana. O ser humano não é criado pra ficar enjaulado em casa. A casa pode ser vista como um porto seguro, e é nosso referencial de segurança e tranquilidade, mas uma hora isso se mostra cansativo. Mas tem algo além. Se você faz academia, você faz o seu treino, se olha no espelho, pensa: hum, estou progredindo. Se você treina por três meses e não percebe nenhuma mudança, qual é a resposta natural, emocional? Ah, não está funcionando, não vou gastar meu tempo com isso. O que está ocorrendo na pandemia é isso. Todo mundo falando: tem que fazer sua parte. Mas estou fazendo e continuam morrendo mais de mil pessoas todos os dias. Então parece que sua contribuição social não está sendo eficaz. Ocorre um cansaço, uma desmotivação — seu esforço parece não repercutir na conjuntura nacional. E você passa a ver nas redes sociais as pessoas começando a fazer festinhas, ouve vozes no vizinho sábado à noite, as pessoas fazendo esporte sem máscara. Parece que seu esforço não vale a pena, que não é valorizado. O que desincentiva a sustentação do novo comportamento. Você está fazendo sua parte e seu vizinho está recebendo um monte de gente. Numa sociedade individualista, a pessoa pensa: quer saber, vou fazer o que eu bem entender.

  • G |Deveríamos então ter um debate sobre redução de danos?

    AD |

    Eu acho que é o caminho. Eu recém-criei um canal no Youtube chamado “Mente Saudável”. Lá eu falei da “flexibilização psicológica da quarentena”. Percebi que as pessoas estavam se sentindo oprimidas por um jeito muito severo de lidar com a quarentena, a ponto de se prejudicar emocionalmente. Coisa que agora acho que já relaxou, talvez demais. Mas a ideia era seguir um pouco a redução de danos. Sai pra caminhar, com máscara e tal, mas não deixe de fazer atividade física ou se relacionar com as pessoas. A quarentena tem esse aspecto de dever, de se policiar o tempo todo: põe máscara, tira, lava a mão, autocontrole — não pode mais encostar, não pode abraçar, tem de cumprimentar diferente — tudo isso é psicologicamente cansativo. É preciso dar espaço para algumas vazões. Claro, de máscara, evitando aglomerações. Mas saia para caminhar. Se você tem um carro, dá uma volta na cidade ouvindo música. Já ajuda a fugir dessa severidade que as pessoas se impuseram no início e que é insustentável. Enquanto isso, existe uma maioria silenciosa que não participa do fogo cruzado desse debate e que, às escondidas, na falta de diretrizes, está tomando as próprias decisões. Ficam acuadas quando quebram (o isolamento) e sentem culpa, mas não revelam nada, não querem se mostrar vulneráveis. Enquanto tem uns poucos trocando farpas, tem um monte de gente assistindo a isso ou não — e tomando suas decisões por conta própria.

  • G |E qual o papel da habituação, o processo pelo qual vamos nos acostumando aos riscos?

    AD |

    Isso é super importante, e mostra o quanto a falta de uma diretriz mais clara impede uma real análise de risco — ela fica sujeita a uma apreciação individual, subjetiva. Cada um toma conta risco por conta própria, esse risco pode ser subdimensionado, e a pessoa acaba se pondo em risco e aos outros. A habituação é isso: você tem uma dessensibilização da morte, passa a viver esse “novo normal”, sobretudo quando você não vê a mesma preocupação entre os seus pares ou quando, na sua região, isso já não está mais acontecendo como antes. Nas camadas mais abastadas, por exemplo: a doença já não se concentra mais nessas regiões, infelizmente.

  • G |É possível falar de uma transição para a sociabilidade nesse contexto de reabertura?

    AD |

    Esse assunto é sensível, porque envolve a própria flexibilização da quarentena. É preciso tomar o cuidado de não induzir as pessoas a se desengajar. Dito isso, o brasileiro é em geral muito afetivo e expressa sua afetividade de forma física. É preciso respeitar o espaço do outro e isso vai ser uma regra a partir de agora. Isso é valorizar a vida do outro. Agora, se for socializar, que seja o “petit comitê”. Não vai ter mais o barzinho com vinte pessoas na roda, mas talvez tenha um encontro de dois casais em casa. Três amigos. Pequenas células sociais. O que servirá para resgatar um pouco a profundidade das relações. Travar conversas mais profundas pode ser um resgate fundamental desse componente humano que se perdeu com o excesso de opções. Uma possibilidade em meio à escassez. Usar o tempo de forma mais calma: se antes tinha que encontrar cinco grupos diferentes num final de semana, emendar a balada, o excesso mesmo. Agora é um momento de resiliência e respiro.

  • G |Os psicólogos dizem que na vida é preciso ter projetos. Mas como, nesses tempos de incerteza?

    AD |

    Encontrando o lado bom do lado ruim da quarentena. É como escolher os ingredientes de época para compor um prato: se é temporada de laranja, usa laranja; não dá para ter um prato com morango fora da estação. É um pouco isso. A gente se acostumou a ter uma profusão infinita de possibilidades. Então a gente enxerga a quarentena como um período de escassez. Ah, não posso ir no bar. Não pode ir no restaurante, como se fosse o fim do mundo. Mas isso também pode ser uma possibilidade de você reestruturar, reprogramar a sua rotina. Você pode usar esse tempo para adquirir novas habilidades. Aprender a cozinhar, fazer atividade física em casa. Começando com metas atingíveis, porque isso dá um reforço positivo, de que você é capaz. Daí você parte para metas mais robustas, mais agressivas. Com a privação a gente aprende muito, sobre a gente, sobre os outros. A gente pode aprender novos comportamentos que acabará usando depois. É um patrimônio que fica para além da quarentena, que podemos incorporar. Seria essa a mensagem positiva na escassez. Todo processo de mudança de comportamento passa pela curiosidade, e pelo teste, por testar algo, por colocar em prática. Afinal, temos medo do novo. As pessoas estão com resistência por que não sabem quanto isso vai durar. Elas adiaram essas mudanças: ah, vai ser um mês, dois, três. A gente precisa assumir de vez que existe esse novo contexto e ver o que pode aprender com ele.

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