Coluna da Bianca Santana: Carta ao presidente — Gama Revista
COLUNA

Bianca Santana

Carta ao presidente

Imagino que para responder ao mundo com tanta violência, o senhor deve ter sido muito violentado. Peço licença para recomendar que o senhor busque apoio psicológico e espiritual para lidar com traumas

16 de Dezembro de 2020

Querido presidente,

Sua condenação na justiça, por ter me acusado falsamente de escrever fake news, foi um lampejo de esperança no judiciário brasileiro e em nossas instituições democráticas. Mas, principalmente, reafirmou a importância da luta coletiva. Meu nome no processo também era o da UNEafro Brasil, os das 170 entidades que compõem a Coalizão Negra por Direitos, os dos 20 grupos que assinaram uma denúncia ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, os das mulheres, negras, negros, LGBTQIA+ e outras pessoas constantemente atacadas pelo senhor.

Mas não escrevo em comemoração. Com mais de 180 mil mortes por COVID-19, e a taxa de contaminação crescendo, não há nada a comemorar. Escrevo para compartilhar algumas reflexões e recomendações. Espero não ser invasiva.

Há tempos, ao observá-lo, imagino que para responder ao mundo com tanta violência, o senhor deve ter sido muito violentado. Como dizia a minha avó, cada um entrega aquilo que tem. Mas as dores que o mundo nos causa podem ser olhadas, tratadas, reparadas. Não podemos deixar que o rancor domine nossa racionalidade e nossa capacidade de ter empatia e de amar as pessoas. Especialmente quando se coloca a serviço do interesse público, como deveria ser o caso de quem usa a faixa presidencial.

Autocuidado, ajuda profissional e contribuição com a justiça serão importantes para o senhor passar com dignidade pelo impeachment

Eu conheço pouco do senhor e da sua história. Mas sinto que sua raiva do comunismo ou da esquerda podem ter uma genealogia, em um passado distante, em incoerências que de fato existem. Quando entrei pela primeira vez em casas de classe média alta, de pessoas que se diziam feministas e lutadoras por justiça social, e vi um Brasil escravocrata, fiquei chocada. Revoltada. Mas compreendi que as contradições sociais e raciais do país se manifestam também na vida das pessoas. E em vez de responder com ódio, podemos denunciar as contradições, cobrar e agir pelas mudanças. Não existem categorias de bem e mal totalmente separadas, com comunistas fixados no mal, entende? Assim como o senhor, mesmo abandonando mais de 180 mil pessoas à morte no Brasil, não é a encarnação do mal
O senhor já deve ter ouvido falar de ubuntu, “eu sou porque nós somos”, nas palavras de Marielle Franco. A noção sofisticada da filosofia banto de que somos todas e todos partes de um todo. De algum modo, eu sou porque o senhor é e vice-versa. Somos expressões de uma mesma sociedade racista, machista, heterocispatriarcal, desigual e injusta. Por isso me parece importante que nos olhemos.

Eu sou uma das signatárias do pedido de impeachment negro pelos crimes de responsabilidade atribuídos ao senhor. Crimes que precisam ser investigados e julgados pelo Estado brasileiro, com a possibilidade de resultar em pena e depois em reinserção social. Como é o direito de qualquer pessoa condenada pela justiça. Sim, sou daquelas que o senhor acusa de defender bandido.

Peço licença para recomendar que o senhor busque apoio psicológico e espiritual para lidar com frustrações e traumas em profundidade, como eu também faço. Pode ser um caminho importante, apesar de doloroso, para se abrir a escutar e a respeitar a diversidade de pessoas que compõem o Brasil, perceber o mal que suas ações têm provocado a milhares de pessoas. E a partir daí, quem sabe, reavaliar as amizades com milicianos, compreender que nem a polícia nem a inteligência brasileira estão aí para proteger sua família e seus amigos. Reconhecer que o Estado brasileiro deve estar a serviço do povo, formado também por mulheres negras, pessoas faveladas, periféricas, LGBTQIA+, que professam religiões de matriz africana, quilombolas, pretos e pretas com distintas confissões de fé, povos do campo, das águas e da floresta, trabalhadores explorados, informais e desempregados.

O senhor tem muito a contribuir com o Brasil! Tem informações sobre os cheques depositados na conta da sua esposa, sobre possíveis contravenções de seus filhos, talvez sobre o assassinato de Adriano da Nóbrega, quem sabe até sobre o assasinato de Marielle Franco, já que é tão próximo de acusados do crime.

Autocuidado, ajuda profissional e contribuição com a justiça serão importantes para o senhor se fortalecer, deixar de se portar como um genocida, e passar com dignidade pelo processo de impeachment que deve estar chegando.

Tchau, querido!

Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de 'Quando Me Descobri Negra'. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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