Coluna do Fernando Luna: Idiota não tem tédio — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Idiota não tem tédio

Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre a falta que o tédio faz, o melhor não-carnaval de todos os tempos, assombrações do novo capeta digital e a virtude da paciência onde é tudo pra ontem

22 de Fevereiro de 2021

“Prefiro Toddy ao tédio”

Ledusha, 1981

Idiota não tem tédio.

Idiota sempre dá um jeito de se ocupar, mesmo que se ocupar signifique infernizar a vida dos outros. Mesmo que esses outros sejam os 210 milhões de cidadãos que ele deveria governar em vez de aporrinhar.

Idiota calado é um poeta. Quando abre a boca, faz do verbo um vendaval.

Bafejando boçalidade, parte logo pra ação. Aí derruba em R$ 100 bilhões o valor de uma das principais empresas do país, ao mesmo tempo em que impulsiona um novo salto do dólar.

(Até quando os Faria Limers vão continuar acendendo vela no altar de Paulo Guedes?)

Idiota nos lembra que, ao contrário do que defendem os Manuais para Otimizar Performances Proativas, às vezes não fazer nada pode ser melhor que fazer alguma coisa.

Idiota quieto provoca menos estrago.

O problema é que idiota não tem vida interior para se distrair. É incapaz de se entregar ao torpor do dolce far niente ou de boiar no marasmo.

Ele vive atormentado por um bicho carpinteiro que rói sua massa cinzenta, enquanto dá uma ideia errada atrás da outra.

Que tal trocar o presidente da Petrobras de supetão? Que tal ameaçar outras interferências sem pé nem cabeça? Que tal autorizar mais armas e munições, como não bastassem 43 mil assassinatos por ano? Que tal atrapalhar a vacinação em meio à pandemia? Que tal aproveitar o feriadão pra provocar algomeração?

Seu exemplo destrambelhado se espalha com velocidade estonteante.

Inspira figuras como o deputado federal Daniel Silveira, que por sua vez foi capaz de inspirar 31 mil eleitores a votarem nele na última eleição – e havia outros 1.153 candidatos ao cargo.

Assustador pensar que provavelmente esses 31 mil eleitores repetiriam o voto. Mais assustador pensar que provavelmente ainda mais gente votaria nele depois desse vexame todo.

A poeta paulista Ledusha publicou em seu livro “Risco no Disco” o verso “New-maiacovski” – uma paródia do velho Maiakóvski, que preferia morrer de vodca que de tédio.

Brasileiro pode morrer de tudo – vírus, bala perdida ou raiva. Só não morre de tédio. O presidente não deixa.

“Duas pessoas dançando a mesma música em dias diferentes formam um par?”

Ana Martins Marques, 2017

Logo quando a gente mais precisa de carnaval, não tem carnaval.

Ou tem?

Não tô falando da bizarrice que são aqueles bailes clandestinos ou simplesmente maldisfarçados. Esses não são carnaval, são negacionismo.

Tô pensando aqui em todas as pessoas, por todos os cantos do país, fazendo seus próprios carnavais só no sapatinho. Folia DIY: do it yourself, faça você mesmo, miudinho.

O corredor de casa vira avenida, o piso de tacos é chão da praça, quatro amigos já são um bloco inteiro e qualquer caixinha de som ordinária faz as vezes de batucada.

É a mesma coisa que mergulhar na algazarra atrás do Boi Tolo, às oito da matina no centro do Rio? Ou cantar “Tristeza por favor vá embora” junto com a multidão, cruzando o Túnel Novo em direção a Copacabana? Ou assistir à última escola passar na Sapucaí, com o sol chegando e aquela sensação boa de que espremeu até o bagaço do dia? Ou escutar “Manhã de Carnaval” no táxi, enquanto volta pra dormir antes de começar tudo de novo? Claro que não.

Em compensação, tem banheiro limpo, bebida gelada e ninguém rouba seu celular.

E se você somar o seu minicarnaval com o meu minicarnaval, mais todos os outros carnavaizinhos acontecendo por aí, dá um carnavalzão. Tá todo mundo separado, mas também tá todo mundo junto. A pandemia separa, a folia reúne.

Isso é uma ótima notícia mesmo pra quem sempre preferiu pular o carnaval, fugindo dos tamborins, ao invés de pular carnaval. Porque o carnaval é generoso e espalha seus benefícios pra todos: a celebração melhora o humor nacional, funciona como elixir pro país inteiro, um suco verde e amarelo detox.

Brasil sem carnaval seria como Maria Bethânia sem voz, Beatriz Milhazes sem tinta, trio elétrico sem gasolina – só que pior.

Por isso, quando a poeta mineira Ana Martins Marques pergunta se duas pessoas dançando a mesma música em dias diferentes formam um par, já jogo os dedinhos pro alto e respondo: sim.

O carnaval dobra o espaço-tempo. Mesmo festejando em momentos diferentes e em lugares diferentes, tá todo mundo na cadência bonita do samba.

“A descida é fácil: as portas do inferno estão abertas dia e noite”

Virgílio, 19 a.C.

Quando você acha que as coisas não podem mais piorar, vem alguém e lança uma nova rede social: Clubhouse.

Francamente.

Como se nossa existência já não estivesse suficientemente azucrinada com Instagram, WhatsApp, You Tube, Tik Tok, Twitter e, sim, Facebook – talvez você ande meio sumido de lá, mas 2,7 bilhões de pessoas ainda frequentam o latifúndio virtual.

Nada disso impediu dois caras do Vale do Silício de pensar que, ei, talvez a humanidade ainda tenha alguma sanidade e tempo livre pra gente destruir.

Aparentemente, temos.

Desde o lançamento, há menos de um ano, a avaliação da start up saltou de 100 milhões pra unicornia cifra de 1 bilhão de dólares. Nos últimos dois meses, o número de usuários pulou de 600 mil pra 6 milhões.

O mais surpreendente é que tudo isso aconteceu sem precisar de vídeo, imagem ou textão. A nova plataforma funciona apenas com áudio. Logo áudio, que todo mundo ama odiar nos aplicativos de mensagem.

Depois de manter a pose em infinitas reuniões por vídeo, simplesmente falar e ouvir às cegas pode ser reconfortante. O Clubhouse se organiza em salas temáticas, onde até 5 mil pessoas discutem de BBB a mudança climática.

Na última sexta, o app baixou no Brasil. Digo, no Brasil de iPhone – por enquanto, roda só em iOS, deixando de fora 87% dos celulares do país, pra mal disfarçada alegria da gente diferenciada & early adopter.

Em seu FAQ, a rede se define como um lugar para encontrar amigos e gente nova de todo mundo – para contar histórias, fazer perguntas, debater, aprender e bater papo sobre milhares de assuntos diferentes”.

De boas intenções o ciberespaço está cheio.

Sem qualquer tipo de moderação ou registro do que se diz por ali, periga atrair tanto malucos tipo QAnon com seus discursos de ódio, como especialistas tipo coach com suas platitudes improvisadas.

No sexto livro de sua “Eneida”, Virgílio lembra como é fácil cair em tentação infernal. E completa: difícil é voltar. Eu devia ter lembrado disso antes de abraçar mais esse capeta digital e entrar no Clubhouse.

“O uniforme do dia é a paciência,/ a condecoração, a pobre estrela da esperança”

Ingeborg Bachmann, 1953

Sabe quando você tá segurando o xixi, chega na porta de casa e parece que vai explodir?

Com a vacinação é igualzinho.

Todos os excruciantes truques mentais pra manter a dignidade vacilam bem no último instante.

Aguentou dois cancelamentos de Uber, 17 sinais vermelhos mais demorados que tratamento de canal, o maldito elevador do seu prédio parando em todos os andares. Depois de superar tudo isso com firmeza e pernas cruzadas, o Templo de Alívio Doméstico logo ali, qualquer segundo extra de adiamento parece simplesmente insuportável.

Todo brasileiro na fila da vacina é uma bexiga prestes a estourar.

Aguentamos onze meses de quarentena, 725 reuniões por Zoom que podiam ser um e-mail, 3412 e-mails que podiam ser nada, um Ministro da Saúde menos que nada – o nada pelo menos não atrapalha. Depois de superar tudo isso com álcool em gel e máscara na cara, qualquer segundo extra de adiamento parece simplesmente insuportável.

Taí minha mãe, que não me deixa mentir.

Essa sassaricante nutricionista de 76 anos queria porque queria sair do posto de vacinação direto pra roda de samba. Felizmente não havia batucada às 9 da manhã.

Mesmo quem já recebeu a primeira dose precisa resistir à tentação de botar o bloco na rua: a resposta imunológica só chega em três semanas, a segunda picada é indispensável e apenas 1% da população foi vacinada até agora.

(Existe mais gente imunizada dentro da casa do BBB que no resto do país. Proporcionalmente, Carluxo.)

Já tivemos medo, cansaço e raiva durante a pandemia. Agora é paciência.

Talvez a virtude mais difícil num país em que tudo deveria ser pra ontem, mas fica sempre pra amanhã. São 27 milhões de pessoas na pobreza extrema, sem o auxílio emergencial e com um desgoverno brutal.

Tem quem compare a tragédia de hoje com a Segunda Guerra Mundial. A austríaca Ingeborg Bachmann escreveu o poema “Todos os Dias” na ressaca do conflito. Seus versos mostram que “o pior já passou” é bastante diferente de “tá tudo bem”.

Paciência. É melhor do que ser confundido com bolsonarista – isso não tem vacina que dê jeito.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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