Coluna da Isabelle Moreira Lima: 2020, um ano azedo — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

2020, um ano azedo

Com suas bebidas festivas, o gosto azedo pode deixar esse período um pouco menos difícil e, quem sabe, mais elétrico, como os vinhos laranjas e as cervejas sour podem ser

02 de Setembro de 2020

Que a gastronomia segue tendências já é sabido, mas é muito estranho pensar que o paladar, um sentido do corpo humano, algo biológico, obedece a uma moda. Claro que obedece: nos anos 1990, fomos perseguidos pelo tomate seco; nos 2000, uma onda de queijo brie com damasco inundou o mundo; nos 2010, no Brasil especialmente, celebramos a pupunha. E eis que uma nova década chega e, com ela, um novo sabor. Mais esquisito do que aceitar a ideia de que o paladar segue moda é que é justamente o azedo que está em gosto, é o sabor mais festejado de 2020 (Freud explica?).

Os hipsters do mundo do vinho celebram o vinho laranja, uma bebida feita de uvas brancas que ficam mais tempo em contato com as cascas durante seu processo de produção e, por isso, adquire taninos (algo dos tintos) e mais corpo que os brancos convencionais. O nome vem da sua coloração, que nem sempre é laranja, pode ir do dourado ao cor de rosa. São muito gastronômicos e secos. Mas como foram fortemente incorporados pelos produtores de vinhos naturais, que são mais minimalistas na vinificação e não adicionam compostos para corrigir o vinho, acabam carregando mais características da fermentação, como uma forte lembrança da levedura, por exemplo, que puxa para o lado do azedo. Isso pode ser sentido tanto no aroma quanto no paladar.

Na boca, esses vinhos são bem menos sérios, mais divertidos, muito frescos, com acidez nas alturas; vão bem com tudo em uma mesa — levantam a bola da comida. Têm um charme adicional: é comum que sejam usadas ânforas ancestrais, talhas portuguesas, tinajas típicas chilenas, entre outros apetrechos, em sua produção.

Na cerveja artesanal, os cervejeiros mais descolados, já faz um tempo, se apaixonaram pelo estilo sour. Seu processo de produção inclui duas fermentações, uma produz o álcool (bem baixo, no máximo 4%), e outra a acidez. O resultado é uma bebida ácida, fácil de beber. Heloisa Lupinacci, especialista em cerveja, colunista do Paladar do jornal O Estado de S. Paulo, e minha grande interlocutora para papos cruzados sobre as duas bebidas, descreve essas cervejas como “flexíveis, brincalhonas, democráticas. Combinam com as mais variadas adições de ingredientes e são sucesso garantido em harmonizações”.

É justamente o azedo que está em gosto, é o sabor mais festejado de 2020 (Freud explica?)

Se você provar, na mesma ocasião, uma sour e um laranja, vai ver que um está para a cerveja como o outro está para o vinho, que são primos-amigos-irmãos. O palpite da Heloisa é que é uma resposta a uma “robustez exagerada da onda anterior”. Ela se refere especificamente ao endeusamento das cervejas IPA, de alto amargor, muito corpo e muito álcool; e à era Parker, em que os vinhos de maior pontuação concedida pelo crítico de vinhos americano Robert Parker eram os mais encorpados, tânicos e alcoólicos com alta concentração de fruta — ficaram conhecidos, inclusive, como fruit bomb. Essa institucionalização do gosto pessoal dele elevou os preços dos vinhos de Bordeaux, que seguiam sua preferência naturalmente, a um patamar surreal e “padronizou” vinhos nas mais diversas regiões produtoras neste perfil.

O movimento atual então seria de negação desse passado recente e de louvação da acidez. Afinal, se a gente cansa das coisas quando elas são pesadas e acontecem repetidamente, não podemos exigir mais do paladar.

Mas a tendência vai muito além do vinho, e até além dos alcoólicos. Pense nos kombuchás, por exemplo, que são praticamente um suco de levedura e trazem na sua essência esse sabor azedo. Ou até mesmo no café, para quem o azedo é defeito, mas que celebram quando há uma acidez viva e brilhante equilibrada por certa doçura.

Para além do mundo das bebidas, quem, entre os apaixonados pela gastronomia, não entrou na #Pãodemia nesta pandemia? E qual o ingrediente favorito desse movimento? O levain, o fermento natural que traz o famigerado sabor azedo como cartão de visita, ingrediente indispensável para fazer o pão ao estilo de San Francisco, o sourdough. Aliás, seria o levain o maior disseminador desse movimento?

Se o assunto interessa, leia a bíblia completa e premiada escrita por Sandor Katz, “A Arte da Fermentação” (Sesi-SP Editora, 2014). E vem aí “Fermentação à Brasileira”, editado pela Melhoramentos com curadoria do Instituto Brasil a Gosto, que deve trazer um pouco do espírito azedo aos ingredientes brasileiros.

Mas voltemos a 2020 e ao azedume que lhe caracteriza. Pelo dicionário, azedo é algo de sabor ou cheiro ácido. E todas essas comidas e bebidas citadas acima são alegres e saborosas — um vinho com acidez muito alta é alegre, pra cima; um café com acidez é leve, saboroso. Na quarta definição do Houaiss, no entanto, azedo se refere a mau humor, irritação. Na sétima, cansaço, fraqueza. Com isso tudo, faz todo sentido que este seja o ano do azedo. Mas talvez com esse sabor, suas bebidas festivas, seu pão saboroso, podemos deixar o período um pouco menos difícil e, quem sabe, mais elétrico, como os vinhos laranjas e as cervejas sour podem ser.

Saca essa rolha

PARA ENCONTRAR O AZEDO NO VINHO…
Um laranja italiano de Abruzzo, produzido com a uva Montonico, esse Cantina Indigeno Bisint 2018 é um azedume só e dos bons. Minha garrafa estava refermentando e senti uma agradável agulha (carbonatação levíssima) no primeiro gole. Naturalíssimo, ele é opaco e, pode-se dizer, um primo do Kombuchá nos aromas. Comprova toda a tese aí de cima.

…NA CERVEJA…
Se você nunca bebeu uma cerveja sour vai ficar surpreso: ela não parece com nenhuma outra que você já tenha provado. Para iniciar, sugiro a versão da Central (se estiver em São Paulo), que é fácil. Ou a da Dogma, com muita personalidade.

… E UMA BOA ACIDEZ NO CAFÉ
Na cafeteria mais próxima, converse com o barista e pergunte se há algum café com acidez alta. Fique atento se doçura é mencionada na descrição, ela é importante para equilibrar os sabores. No Takko, você pode tomar ou levar para casa o Zé Wagner Junqueira (eles batizam os cafés com o nome do pequeno produtor), da Mantiqueira, que tem os dois elementos.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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