Coluna Leandro Sarmatz: Carne de vaca — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

Carne de vaca

Recebemos das artes aquilo que oferecemos da parte de nossos espíritos. E é isso que temos oferecido: banalidade, ignorância, violência, gritos e pontapés

18 de Janeiro de 2021

O tema parece que já é velho – mas apenas porque os fatos se atropelam com tal rapidez que a notícia escandalosa de ontem se torna contemporânea do atentado de Sarajevo em 1914. Somos uma sociedade engolfada numa espécie de Alzheimer coletivo. Memória recente não é o nosso forte. Preferimos lembrar o que aconteceu com Moisés (Era mesmo gago? Sério que levou 40 anos no deserto?) do que se passou no Brasil há dois ou três anos.

Ou um pouco antes, quando a estética parecer ter prenunciado uma nova ética. Lá por meados dos anos 2000, o sertanejo universitário começou a tomar conta do mercado fonográfico, dos shows em arenas, dos eventos agropecuários. Fora de Rio e São Paulo, ele cresceu naquelas sociedades baseadas na economia do campo. Mas não apenas a economia. Mato Grosso do Sul, Goiás e o interiorzão afluente do estado de São Paulo, lugares onde se atribui o surgimento desse gênero, são o próprio ethos rural: presos ao passado, desconfiados do que chega de fora, muitas vezes conservadores nos costumes.

A nova economia brasileira parece ter sua trilha sonora no andamento acelerado, na estética country e em alguns hits do sertanejo universitário

Não é caso de invocar Marx sobre o assunto, até porque a “idiotia rural” há muito foi trocada por um capitalismo feroz e ambientalmente predatório. Pois a ponta de lança da nova economia brasileira, em processo de desindustrialização e de volta às commodities, sem mais pretensão alguma de se inserir na discussão internacional que é a marca do governo Bolsonaro, me parece ter sua trilha sonora ali, no andamento acelerado, na estética country e no conteúdo de algumas canções do sertanejo universitário. Ressentimento, amnésia alcoólica e vingança do macho preterido são alguns dos temas das letras. Há quem goste, muita gente aliás. Não é meu cup of tea.

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Vejo um meme dos últimos dias, depois do infame ataque ao Capitólio americano. Alguém faz a comparação com a casa de Gusttavo Lima, um dos nomes mais populares do sertanejo universitário. Até que guardam algumas semelhanças. Alvura, grandiosidade, colunas jônicas, uma arquitetura clássica e espetaculosa. O tipo de estilo praticado por Albert Speer, o arquiteto favorito de Hitler. A Berlim imaginada por Speer para o triunfo milenar do Reich, e de que temos notícias pelas fotografias de maquetes, era uma salada cafona de cúpulas, colunas clássicas, esplanadas destinadas a transformar a multidão num só organismo. Uma caricatura banal, genérica e grandiloquente daquela Paris amada pelo Führer.

Essa noção da arte clássica como repositório dos “valores verdadeiros” foi evocada pelo então secretário especial de Cultura Roberto Alvim, em janeiro do ano passado, num discurso copiado de Joseph Goebbels, o chefe da propaganda nazista. (Logo depois, Alvim foi sucedido por Regina Duarte, uma entusiasta da Ditadura e interlocutora dos grandes ruralistas contra os direitos indígenas.) Alvim, um encenador de algum pedigree que aderiu à catástrofe bolsonarista, falava em “pathos”, “sentimento heroico” e outras papagaiadas da turma do coturno e do couro preto. E isso tudo converge nos recorrentes ataques de Jair Bolsonaro à cultura. Um “apaixonado pela música sertaneja”, como certa vez se definiu, o presidente é uma das figuras mais ignorantes da nossa história política. Odeia tudo o que não faz parte de sua dieta, de Chico Buarque à literatura de Rubem Fonseca, de Anitta a Bacurau.

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Em nossa cultura obcecada pela imagem e pelas narrativas do êxito, aquele que faz sucesso não pode ouvir muitas reprimendas

Em nossa cultura obcecada pela imagem e pelas narrativas do êxito, aquele que faz sucesso não pode ouvir muitas reprimendas. E vamos além: se alguém de classe média intelectualizada critica um grande sucesso popular, é porque tem “inveja” ou é “esnobe”. O argumento é frágil como a maquete da Berlim nazista, mas perdurável. Não me sentindo particularmente invejoso dos campeões de vendas de nossa música mais popular, e tampouco – posso garantir — dado a esnobismos, acho que atingimos um momento crítico na ética e na estética. Porque há algo no sertanejo universitário que parece ecoar a resposta, em nossa combalida indústria cultural, ao bolsonarismo na política.

Não me entenda mal. Sei que mitos regressivos como o da bossa nova não servem mais para elucidar o fosso em que nos afundamos. Ou o cinema novo. Ou a tropicália. Ou toda uma nova geração de artistas da música, da poesia, das artes visuais. Recebemos das artes aquilo que oferecemos da parte de nossos espíritos, esse é o enrosco monumental. E é isso que temos (como sociedade) oferecido nos últimos tempos: banalidade, ignorância, gritos e pontapés. Nós merecemos isso. Nós não merecemos isso.

*Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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