Coluna do Sarmatz: Mais mistura e menos gueto — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

Me chama de mistura

Pureza cultural é coisa de nazista e de quem faz arminha com a mão. Nenhuma cultura é essencialmente ‘pura’

14 de Dezembro de 2020

Alguém uma vez disse que uma grande cidade se faz com vastas populações de negros, gays e judeus. E eu acrescentaria: também com árabes, bolivianos, nigerianos, japoneses, peruanos, angolanos, coreanos e todo mundo que vem de fora – inclusive de outros estados do país. Pureza cultural é coisa de nazista e de quem faz arminha com a mão. Nenhuma cultura é essencialmente “pura”. Essa é a maior balela da história. Uma autoilusão de eugenistas e histéricos. Uma cultura é um panelão cheio de temperos que, à primeira vista, parecem não ornar. Mas que depois dão um caldo inesquecível.

Durante muito tempo, e ainda hoje, as grandes misturas eram feitas nas Américas. Nos últimos 30 anos, pelo menos, a cena também ocorre na Europa. Ainda bem. Aquela França “autêntica” (douce France, etc.), aquela Inglaterra “british”, tudo isso é coisa do passado. As levas de imigrantes das ex-colônias, as populações em movimento em busca de trabalho, os refugiados da fome e da guerra: vinde a mim os imigrantes, a maior riqueza humana deste planeta.

Todo mundo se beneficia. Eu mesmo sou neto de imigrantes do leste europeu que desembarcaram no Sul do país fugindo da fome e dos pogroms. Adulto, vim para São Paulo, essa cidade que acolhe gente de todos os quadrantes. Tenho uma filha que é neta de romenos, italianos, russos e portugueses. Claro que frequentemente vemos tensões – o preconceito arraigado contra nordestinos, o racismo estrutural –, mas a força de uma cidade como São Paulo só existe graças a quem veio de fora e deitou raízes.

Uma cultura é um panelão cheio de temperos que, à primeira vista, parecem não ornar. Mas que depois dão um caldo inesquecível

Se há um futuro para a humanidade, ele está na livre circulação de pessoas e culturas. Dois dos nomes mais poderosos da moda urbana hoje são descendentes de imigrantes. E isso não é por acaso. Sua veia criativa se alimenta da mistura de duas grandes metrópoles. Grace Wales Bonner e Teddy Santis seriam inimagináveis num cenário de “pureza cultural” em que não pudessem, cada um à sua maneira, misturar as culturas de seus países de nascimento (Inglaterra e Estados Unidos, respectivamente) com referências de outros lugares.

Wales Bonner, fundadora da marca epônima, é um prodígio. Nascida em Londres em 1992, é filha de uma mãe inglesa (branca) e um pai jamaicano. Sua Londres estética é um Aleph da cultura de Kingston com a própria cena do reggae da Inglaterra a partir dos anos 1970, passando pelos sapeurs africanos, aqueles sujeitos alinhadíssimos e criativos que sambam na lama de sapato branco. Wales Bonner é Adidas com tweed. Realeza negra e dub. Ela tomou emprestada a nobreza de Bob Marley e, numa operação sofisticadíssima de, hum, “apropriação cultural”, relê a história visual e comportamental de Londres a um só tempo com frescor e reverência aos salões de dancehall da geração de seus pais. Poucas coisas hoje são mais elegantes do que a vida filtrada por Wales Bonner.

Sem esquecer do passado de espoliação e brutalidade racial e social, devemos nos perguntar que tipo de país – e de cultura – desejamos

Filho de gregos, nascido no Queens, Teddy Santis é ligeiramente mais velho – nasceu na década de 1980. Sua marca, Aimé Leon Dore, é solidamente apoiada na criação de outro filho de imigrantes, um tal de Ralph Lifshitz, conhece? Pois foi em Ralph Lauren que Santis encontrou um caminho. Aquela elegância esportiva e toda em colorblock ele tomou de Lauren. Moletons, cardigãs, um clima de iate no asfalto: tudo parece vir do mestre. Mas com alguns elementos a mais. E que dão o plot twist na visão estética de Santis. Acontece que o Queens é conhecido como o “bairro do mundo”: concentra populações do planeta inteiro, de brasileiros a etíopes, de mexicanos a haitianos. Uma cultura urbana fervilhante, em que o basquete, o rap e a veneração por Nikes do passado formam uma nova língua-franca.

Tem sido um tempo difícil. A pandemia, além de tudo, nos faz temer o outro, o que não conhecemos os hábitos, aquele que vem de fora, o estranho com quem esbarramos na rua. A pandemia é um ótimo estratagema para quem sonha com fronteiras fechadas, com um “Brasil para brasileiros acima de tudo”, esse amontoado irracional e preconceituoso de besteiras que circulam em Brasília e no WhatsApp. Não é o caso de saudar acriticamente — à Disney ou Gilberto Freyre — nossa mistura local. A violência subjacente de nossa formidável vitalidade cultural é um capítulo horrendo que jamais deve ser esquecido ou contornado.

Sem esquecer esse passado violento de espoliação e brutalidade racial e social, devemos nos perguntar que tipo de país – e de cultura – desejamos. Certamente não é aquela retratada na pose ministerial no Palácio do Planalto (100% macho branco), como muitos ainda insistem em querer. Não. Se precisamos superar o racismo, precisamos igualmente, muitos de nós, entender o valor daquilo que não faz parte de nós mas que, aos poucos, ajuda a nos traduzir para nós mesmos. A gente precisa de mais mistura e menos gueto. Não é fácil e nem é indolor. Mas é o único caminho para superarmos o que temos diante de nós. Uma pandemia, um presidente fascista, uma sociedade que ainda se compraz com a violência e a divisão.
Boas festas.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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