Coluna do Leandro Sarmatz: Questão de tato — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

Questão de tato

O que será de nós depois de tanto tempo sem o exercício do abraço, do beijo e da efusão corpórea? O tato é um dos cinco sentidos. E estamos órfãos dele

15 de Março de 2021

Tem como não falar de morte? Esta semana cumpro um ano inteiro dentro de casa. É um privilégio, sei bem, no meio de tanta tristeza, injustiça e desigualdade. No dia 17 de março de 2020 eu comecei a reorganizar minha vida produtiva, acreditando, como muitos, que depois de alguns meses eu estaria de volta à firma. Ah, as ilusões que criamos para nós mesmos! Perceber um autoengano é o pior flagrante possível: equivale a figurar numa edição de carnaval da Fatos & Fotos – uma morena escultural e um marujo lúbrico em cada braço – quando você tinha avisado à patroa que ia ter serão no escritório. E você ainda acordou num motel da Dutra.

De lá para cá muita coisa mudou. A começar por esta coluna, cujo plano inicial era o doce comentário sobre camisas havaianas, tênis Stan Smith, a ascensão do bege e outras amenidades estéticas. Recuso-me terminantemente a qualificá-las como frivolidades. Questão de método. São essas “bagatelas” (para muitos, admitamos) que nos ajudam a compreender certos aspectos da nossa sociedade. A grande história também se faz com nota de rodapé. E com prazer.

Mas tergiverso. O fato é que o hálito da morte está entre nós. Nas últimas semanas, enquanto boa parte do mundo olha para os próximos meses com alguma esperança, nós descobrimos que só dispomos de nós mesmos e de algumas autoridades municipais e estaduais, quando muito. Estamos engolfados no caos. Brasília tornou-se nossa Conferência de Wannsee – a reunião em 1942 em que o alto-escalão nazista chegou à “Solução Final” –, só que diuturna, permanente. O discurso de Lula, no último dia 10, apenas trouxe um contraste maior para a zona sombria em que estamos atolados. A esperança e o esclarecimento, ainda que retóricos, é tudo o que temos no momento. Não é muito. Já é alguma coisa.

Mesmo sob esse céu de amianto que cobre o Brasil noite e dia, pensar em festa deixou de ser um capricho e se tornou uma meta e uma política

Um ano depois, o que teria restado de nós como seres afetivos? Evito a todo custo o sentimentalismo, mas não posso me furtar à pergunta: o que será de nós depois de tanto tempo sem o exercício do abraço, do beijo e da efusão corpórea? O tato é um dos cinco sentidos. E estamos órfãos dele. Quando teremos segurança para nos enfiarmos novamente num tugúrio da Rêgo Freitas, rodeados de amigos quase grudados na pista de dança, embriagados e abraçados até quase o raiar do dia? É uma preocupação legítima. Mesmo sob esse céu de amianto que cobre o Brasil noite e dia, pensar em festa deixou de ser um capricho e se tornou uma meta e uma política. Será nosso dia de libertação. É nossa bandeira.

Muita gente acredita que os anos seguintes à pandemia serão nossos “roaring 20s”, a louca década de 1920 com suas festas e dissipações sem fim. Talvez em Berlim, em Londres ou até mesmo em Buenos Aires. Aqui será uma era de reconstrução. Ao menos idealmente: desses nossos escombros purulentos há de se tentar reinaugurar o país depois do horror, da milícia familiar, da retórica brutal e ignorante. Todo um programa que estava ensaiado desde a Abertura — que não levou a tribunal os torturadores –, mas que ficou em conserva enquanto os políticos forjavam um teatro de alternância no poder e de civilidade democrática. Isso começou a feder em 2014. Aécio é o Abraão de Bolsonaro.

Mas não há nada mais que desagrade essa gente que a alegria e o prazer. Não o deleite sádico sobre a pilha de cadáveres, como o presidente de sorriso arreganhado de hiena no dia em que o Brasil batera um de seus muitos picos de mortes por Covid-19. A alegria da festa. O prazer dos sentidos. Os encontros físicos. Tudo isso, que agora parece tão distante e até mesmo inadequado para se evocar, estará na pauta da reconstrução do Brasil – juntamente com muitas outras coisas, como o respeito aos mortos, o trabalho da memória e a não aceitação da gramática da violência e do elogio à tortura.

Deixar de sonhar com algo melhorzinho para este pedaço de terra é – como dizer? – oferecê-lo em holocausto para seus usurpadores

Parece utópico porque é utópico. O Brasil, essa “utopia de lugar”, esse sonho caymmiano gentil e ensolarado, prazeroso e maduro, só se segura porque é potência onírica. Há muito gesso e papelão ao nosso redor como cenário. E bastidores ferozes, aniquiladores. Contudo, deixar de sonhar com algo melhorzinho para este pedaço de terra é – como dizer? – oferecê-lo em holocausto para seus usurpadores. A eleição de 2018 pode ser qualificada como o maior suicídio coletivo da história. É de morte, novamente, que nos ocupamos.

Ando de bicicleta pela cidade parcialmente esvaziada. São 7h30 da manhã – o horário e o itinerário ajudam a dissipar um pouco da culpa de estar na rua, vivo e desfrutando de uma atividade prazerosa. A bicicleta é elétrica porque quase ninguém aguenta o hopi-hari das ladeiras de São Paulo. Preservo meu fôlego. Tenho evitado ler os jornais e ficar bem-informado antes do passeio ciclístico. Autopreservação, medo da verdade, cegueira do real? Tudo isso, talvez. Porém é uma ignorância provisória, com hora marcada. Depois de encostar a bicicleta na parede, tomar um banho bom e restaurador, começo enfim meu dia.

Não tem como não falar de morte.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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