Coluna da Letrux: A sorte é só para sorrir — Gama Revista
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Letrux

A sorte é só para sorrir

Acreditar que a Mega-Sena é real esbarra numa ilusão constrangedora. Há quem diga que conheça quem ganhou. Há quem tenha teorias do grande caô que é tudo isso

22 de Abril de 2020

Estou em isolamento há mais de um mês na serra. Com meu romance (não é mais bonito falar assim do que falar namorado?) e um outro casal. Saímos poucas vezes para o mercado e só. Na serra não há entregas de nada então cozinhamos absolutamente tudo, todos os dias. Em toda divisão das compras, eu me perco. Se Júlio e Tici gastaram tanto no hortifruti, mas eu e Thiago gastamos tanto no mercado, quanto devemos, quanto eu tenho que receber? Sou humilhada pela minha falta de capacidade em questões simples. Sou naturalmente de humanas. Também sou um pouco dos números mas não de uma maneira “fórmula de bhaskara” e coisas do gênero que decorei durante anos e depois esqueci completamente. Sou dos números num misticismo maluco e inventado e ainda misturo com coincidências macabras. “Se eu sou do dia cinco e meu pai também mas minha mãe é o dobro de cinco, então claro que vou marcar cinco e dez nesse jogo da Mega-Sena aqui, claro.” E não é que vez ou outra acerto? Não a ponto de mudar de vida, só a ponto de sorrir idiotizada e pensar “uau”. Que besteira.

Acertei a quadra duas vezes na vida. Isso tem dez anos. Estava na casa dos meus pais e lá fui eu conferir meu jogo. Primeiro número certo, segundo número também certo, que legal. Terceiro número, ué, também está certo, nossa. Quarto número… ehr, acertei? PAI! PAIIIIII! Comecei a gritar pelo meu pai, que juntamente com sua mãe, minha vó paterna, me ensinaram essa loucura da loteria e suas invenções, manias, tocs, somas absurdas, anotações de aniversários, de vida, de morte, de casamento, sonhos. Meu pai veio numa empolgação, mas aí os últimos dois números já não estavam certos, mas uau. Acertei a quadra. Ganhei R$ 180, o que em 2009 significava uns R$ 500. Fui para uma pousada em Búzios. Foi astral. Era um dinheiro que não existia e de repente existiu. Um tempo depois ganhei de novo, mas comecei errando, então houve uma surpresa no final de “ah, mas acertei quatro números”. Há quem diga que minha sorte acabou aí, com essas duas quadras. Nunca mais fiz nenhum joguinho assim. Acerto um número aqui, uma dupla, um trio, mas isso não rende nada, risos e choros.

Há uns meses fui reconhecida numa casa lotérica enquanto tentava vislumbrar seis números que poderiam mudar minha vida e de outras pessoas próximas a mim. Não deu nem para disfarçar que eu estava pagando uma conta ou algo assim, eu estava com o papelzinho da Mega-Sena e com uma daquelas canetas presa numa corrente. “Letrux?”, a menina perguntou, um tanto quanto impressionada. E eu, sociofóbica da Tijuca, desatei a falar sobre minha relação com sorte, número, dinheiro. Coitada. Parecia que eu tinha sido flagrada fazendo algo constrangedor. E talvez seja. Acreditar que a Mega-Sena é real esbarra numa ilusão constrangedora. Há quem diga que conheça quem ganhou. Há quem tenha teorias do grande caô que é tudo isso.

Nesse período de confinamento, onde o dinheiro virou raridade, acertar seis números mágicos cairia muito bem

Perco boas horas da vida imaginando o que eu faria para começar. A mensagem que mandaria para as amizades: “Larguem tudo e venham com a roupa do corpo para o aeroporto”. O Caribe não estaria pronto para tamanha algazarra. Nesse período de confinamento, onde o dinheiro virou raridade (principalmente na minha área cultural), acertar seis números mágicos cairia muito bem. Claro que uma cota voltada para o prazer seria guardada para quando pudéssemos de novo nos frequentar, passear de barco e comer frutos do mar em restaurantes caros e bons. Só caro tenho raiva. Se é caro, por favor, seja bom, é o mínimo. Mas uma grande cota também seria para doações, as quais faço dentro do meu orçamento de quem está recebendo zero reais pela falta de shows.

Diz-se que é preciso ser egoísta para ganhar na loteria. Caso você seja do tipo empático, que já joga pensando em filantropia, caridade, já era, não vai ganhar. Acho tudo uma grande loucura, não se sabe exatamente o que pensavam esses seres que viveram essa sorte de uma entre cinquenta milhões de pessoas. Há um estudo que diz que essa sorte não muda personalidades. Se você era rabugento antes de ser milionário sem querer, perdão mas você continuará rabugento. Com mais dinheiro, o que é insuportável de se pensar em conviver com alguém assim. Perco boas horas imaginando tudo que eu poderia fazer caso fosse afortunada, tenho até medo da sociedade não estar preparada, o famoso “deus não dá asa à cobra”.

Gosto da minha vida do jeito que é, tenho ambições, projetos, sonhos, mas não acho que falte algo profundo, falta só o que eu invento, mas o básico existe e sou grata, vibro, me encanto com o que é possível. Não sofro, sou do tipo que se diverte com a sorte. Gosto de adivinhações, de jogos oráculos, apostas bestas. Sei que há tipos compulsivos que não podem nem sonhar com isso que já tremem. Mas não há traços compulsórios no meu mapa, portanto consigo ter leveza e alegria quando alguém me chama para um jogo de buraco, valendo R$ 10. É pela graça, sempre. Gosto de me divertir com jogos, não fico com sangue nos olhos, nem sinto que aquela é minha última chance de vitória na vida. Nada disso. Preciso gargalhar, criar jargões, apelidos, fazer contas malucas que só fazem sentido para mim, mas que quando conto para quem está próximo, a pessoa passa mal de rir me chamando de maluca. Gosto disso.

Na Mega-Sena da virada acertei dois números: 35 e 38. O primeiro foi uma idade que me marcou muito, iniciei um trabalho árduo mas que mudou minha vida, o último é minha atual idade, onde ainda trilho caminhos árduos e subo cada vez mais a montanha, bem caprinamente. Passei num edital pela primeira vez na vida. Faço shows há quinze anos. Lancei o quinto disco da minha cronologia, e só agora consegui passar num edital, ter algum reconhecimento de patrocinadores, marcas. Quando lancei o novo trabalho, feito com mais grana, esmero, cuidado, tempo, profissionalismo, o mundo fechou. Não estou brincando. O disco precisa sair em março. A semana logo após o Carnaval não poderia. A última semana também não, pois muito próxima do show de lançamento, as pessoas precisam ouvir antes de ir ao show. Todos lançam disco na sexta-feira, já é uma padrão nas plataformas de streaming. Olhei o calendário. A sexta feira bem no meio era uma sexta 13. Ri, pensei “mais uma vez os números místicos me perseguindo”. Aceitei, achei curioso.

No dia 13 de março, o disco saiu para o mundo e o governo do Rio e de São Paulo fechou as portas. O coito mais interrompido da minha vida. Mas hipocondríaca e preocupada com saúde que sou, simplesmente aceitei. E eu que lute para amenizar minha tristeza e minha frustração. O mundo é maior que isso. Mega-Sena da virada. Muitos milhões, muitos. Acertei 35 e 38. Minha idade da virada e minha idade atual. Não havia relação alguma comigo e os números que errei. Achei significativo e entendi que só vou ganhar grana trabalhando mesmo. A sorte é só para sorrir e achar absurda e criar assunto com as amizades, devanear sobre os lugares, as comidas e vinhos, as casas de praia de trinta mil a diária. Tudo delírio. Delírio bom, mas trabalhar também é bom. Como disse Calvin, uma das minhas crianças inventadas favoritas (juntamente a Chico Bento): “Conseguir é melhor que ter.”

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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