Coluna da Letrux: Rascunhos — Gama Revista
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Rascunhos

Essa pasta nas contas de email são um mergulho escavado na minha psique: há desde sonhos malucos que ninguém quer saber a ideias de letras que quem sabe um dia ganham uma melodia

31 de Março de 2021

Sou ultra-analógica e superdigital ao mesmo tempo. Conservo o prazer da caligrafia e dos papéis e cadernos, lamento muito quem diz que nem sabe mais segurar um lápis. O cheiro da caneta quando desliza na folha é um treco que me deixa louca. Ao mesmo tempo escrevo muito no computador também. Minha pasta de rascunhos do Gmail contém segredos e ideias de livros ou músicas que me fazem gargalhar, me arrepender e me emocionar.

Ando borocoxozinha. Quem não? Sempre fui do time da autoinvestigação, me embrenhando constantemente em processos de cura e de busca por perguntas e respostas sobre o que é essa insanidade de estar viva. Na falta de convívio social, reforcei mais ainda a autoinspeção. Se sou eu e eu, melhor mergulhar direito nesse eu, pra ver se consigo ser melhor depois para quando eu for “nós”. Sempre gostei dos meus trecos e cacarecos. Fossem os analógicos: amo vasculhar as agendas, os diários, os papeizinhos dobrados em dez (e quando você abre é um bilhete bobo de intervalo de escola), as cartinhas (sim, sou desse tempo ainda), mas também sempre gostei de fuçar minhas tralhas analógicas. Acho triste meu fotolog ter sido desativado por causa de uma foto linda da Marina Lima na Playboy. Nem aparecia nada, mas o moralismo é algo antigo nesse país e como dizia Millôr: “Quando uma ideologia fica bem velhinha, vem morar no Brasil”. Alguns blogs apaguei, risos e choros. Assim como queimei umas agendas e diários bem tristes, numa fogueira doida que fiz no réveillon de 2016 pra 2017. Também é bom jogar as tralhas fora. As antigas ou as modernas.

As cartas de amor são quase todas tristes. As felizes, consegui apertar ‘enviar’

Tenho Gmail desde que você precisava de um convite para ter. Que moda insolente essa. O Facebook também foi assim no início, você só entrava com convite. Que coisa mais cafona esse elitismo tolo. Em 2005 recebi um convite pra ter Gmail. Risos. Eu tinha o famoso Hotmail e talvez um Yahoo. Letrucia. Letruska. Letstellar. Os nicknames sempre variavam por aí. Estamos em 2021. Tenho três emails. O mais antigo, quase ninguém manda pra lá, só amigos muito íntimos que esquecem que mudei. Tenho o email da vida e o email da Letrux, minha persona. Em 15 anos devo ter tido quase uns 15 a 20 caderninhos. Um por ano, às vezes mais de um por ano. Mas emails, não. Só esses três. Portanto os rascunhos desses emails são um mergulho escavado na minha psique. Como disse antes, tenho tesão em caligrafia, mas algo no digitar rápido dos dedos num bom teclado também me excita muito. Portanto tenho trocentos rascunhos. Que vão desde sonhos malucos que ninguém quer saber, mas que eu lembro como se fosse uma viagem espacial (e ninguém tira de mim que eu não vivi aquilo), passando por ideias de letras que quem sabe um dia não saem do mundo internético e ganham uma melodia? Nunca se sabe. As cartas de amor são quase todas tristes. As felizes, consegui apertar “enviar”. As tristes ficaram nesse buraco negro dos rascunhos. Não sei como preferi me virar já que não enviei. Me isolei ou mandei uma mensagem no celular, não sei, não lembro. Guardo muito tudo porque minha memória não é boa. Meu companheiro sofre com minhas sequelas, mas fica abismado com minha bagagem. Está tudo ali, nos cadernos e nos rascunhos dos emails. Talvez eu guarde tudo justamente porque sou ruim de memória. Ou talvez seja fraca porque sei que tenho acesso aos documentos comprobatórios? Não sei.

Há algo em mim que diferencia os cadernos dos rascunhos. É como se a materialidade do papel me acalmasse. Está feito, existe. “Se eu morrer e alguém achar, tudo bem, que passe pelo crivo de quem quer que seja minha pessoa herdeira (que agonia pensar isso)”. Já os rascunhos, não. Tenho suor de pensar que alguém pode entrar nessa pasta e vasculhar absurdos meus. Antigos ou de ontem.

Pandemia, ano 2, às vezes no silêncio da noite entro num rascunho de 2007. Como seria se eu estivesse lá?

Sou fascinada com buracos negros, a Wikipédia me diz que “buraco negro é uma região do espaço-tempo em que o campo gravitacional é tão intenso que nada — nenhuma partícula ou radiação eletromagnética como a luz — pode escapar dela”. Quando abro meus rascunhos dos meus três emails sinto exatamente isso. Nada escapa dele, está tudo ali. Toda minha vida nas últimas duas décadas, tudo ali. Amores, nomes, brigas, contas hilárias, cidades pra visitar, nomes pra evitar, troca de mensagens, embriões de livros, de músicas, tudo ali. Amo a cena de “Interestelar” (2014) em que uma personagem entra de fato no buraco negro. Não estou dando spoiler, você nem sabe quem é, caso não tenha visto. Mas o filme oferece uma interpretação do buraco negro que me deixou ultrabolada e mexida. Algo sobre como voltar ao passado ou ir para o futuro. Não estou dando spoiler, você nem vai lembrar. Ou como assim você nunca viu esse filme? Risos. Mentira, é sempre tempo. Nunca li “Guerra e Paz”, pense. Tudo é infinito pra gente ler, ver, ouvir. Que alívio saber disso. Isso me conforta. Me acalma até, sabia?

Pandemia, ano 2, às vezes no silêncio da noite entro num rascunho de 2007. Como seria se eu estivesse lá? Se o rascunho fosse agora? Faria tudo diferente? Teria noção de agora? Estou muito nostálgica? Preciso ter cuidado? Não sei, não sei. Só sei que assim como os cadernos têm seu charme, seu valor, seus cheiros e passearam muito comigo em mochilas e malas, por cidades e países, os rascunhos também surfam muito comigo, constantemente, direto, dentro do vácuo mais insano do tempo. Nunca mandei, nunca saíram de mim, mas talvez essa seja a graça. Não era pra ter destinatário. Era pra ser passeio. Eu me dando a mão pra atravessar a lua. Sem olhar para os lados. Talvez pra cima. É, talvez pra cima.

Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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