Coluna Marcelo Dantas: Voando a gente se entende — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Voando a gente se entende

No abismo entre idiomas, culturas e ideias artísticas, nem sempre a palavra é a melhor forma de aferir o entendimento

15 de Abril de 2020

Se você quer ser um bom jogador de basquete, tem que ter pelo menos 1,80 m de altura. Se você quer ser curador, tem que dormir bem em aviões. A globalização do mundo da arte exige dos curadores uma capacidade de deslocamento muito acima do aceitável. Invariavelmente o que se está buscando é encontrado do outro lado do mundo. Mas, diferentemente de um produto que você pode importar, a curadoria de arte contemporânea é uma troca de ideias, conceitos e contextos. Para entendê-los e conseguir traduzir para os outros, é necessário estar junto, imaginar o que ainda n?o existe, encontrar o problema e problematizar o encontro. Para isso, navegar é preciso.

Num mundo conectado pela internet, mediado por videoconferências que sempre se interrompem na hora H, mensagens incompreensíveis de voz, e-mails redigidos em uma língua mas pensados em outra e fusos horários absurdos, cada vez mais sinto a necessidade do contato olho no olho. É essa forma ancestral de comunicaç?o subliminar que funciona.

Viagens são o primeiro passo para o encontro. Mas o encontro é uma coisa abstrata bem interessante. No abismo entre idiomas, culturas e ideias artísticas, nem sempre a palavra é a melhor forma de aferir o entendimento. Com o tempo, aprendi que muitas vezes as palavras são bastante inadequadas, principalmente as escritas. E que é preciso desenvolver uma sensibilidade para sentir a vibração de cada lugar e de cada pessoa. O desenho é o melhor amigo do artista, e o entorno de uma comida sempre foi o melhor lugar para o entendimento. Numa refeição, as pessoas se abrem e são capazes de mostrar mais da sua essência. Eu sempre meço a intensidade de uma pessoa pela energia que emana do prato que compartilhamos. Se for boa, sabemos que poderá fluir uma troca; se não funcionar à mesa, não funcionará na dimensão criativa. Essa pulsação da energia das plantas e carnes é para mim como um oráculo, um jogo de búzios sobre o que temos a trocar e entender.

Um artista com o qual já colaborei inúmeras vezes é o japonês Makoto Azuma. Ele não fala uma palavra de inglês, e o meu japonês só é bom para não passar fome. Mas nosso entendimento foi sempre excelente. E mais de uma vez cruzei o mundo para poder sentar à mesa com ele e discutir ideias e possibilidades juntos. Azuma é um cara visionário, e eu me identifico com a sua ambição. Ele mandou ikebanas para o espaço sideral, bonsais para os polos e plantou flores de sal no deserto. Sua obra é a capacidade de intervir sobre a realidade mais remota com o símbolo mais sutil da natureza, suas flores. Em torno de yakinikus e bolos de abacaxi com chá, descobrimos o caminho da nossa convergência entre curador e artista.

Sempre meço a intensidade de uma pessoa pela energia que emana do prato que compartilhamos

Outro exemplo é o artista indiano Subodh Gupta, com quem trabalhei. Ele me explicou uma vez que a maior parte dos indianos consegue se comunicar verbalmente em inglês sem muitos problemas, mas poucos são capazes de redigir um texto ou um e-mail; o conhecimento da língua é muito mais oral do que escrito. Uma vez, diante dos impasses dos e-mails, peguei dois voos de 24 horas para passar 36 horas com ele em Nova Délhi e, em torno de um curry madras, nos entendemos perfeitamente.

Muitas vezes a tentativa de estabelecer uma ponte de contato com outras culturas pode ser frustrante, pois a tendência para o não entendimento é muito maior do que para a compreensão. Quanto mais viajo, mais fica claro que o que mais temos em comum é a sensação de incompreensão em relação ao outro. Reconhecer essa fraqueza global nos torna mais humanos e verdadeiros e, portanto, mais propensos a facilitar o entendimento. Mas o que o mundo atual permite é que o outro lado do planeta já não seja tão remoto e a viagem quase sempre valha a pena. Seja pelo encontro que ela pode proporcionar, seja pela verdade que revela quando evidencia que não adianta perder tempo tentando abrir aquela porta.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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