Elisa Fernandes na sua nova cozinha — Gama Revista
Conversas

‘Não viso estrela, mas não faço comida do dia a dia’

Com quase 350 mil seguidores no Instagram, a chef Elisa Fernandes abre seu primeiro restaurante em meio à pandemia, um wine bar de apenas 12 lugares, e prova que os tempos de Masterchef ficaram para trás

Isabelle Moreira Lima 18 de Setembro de 2020
Divulgação

Todo cozinheiro tem um segredo. O da paulista Elisa Fernandes talvez seja cozinhar o que gosta de comer. Quando ela fala dos pratos que saem hoje da sua nova cozinha no Clos Winebar, em São Paulo, fica claro como o entusiasmo não é só o ingrediente base de seus pratos, mas seu tônico fortificante para a vida. Aos 30 anos, Elisa abriu sua primeira casa em meio à pandemia, ao mesmo tempo em que segue um trabalho intenso nas redes sociais — no Instagram, tem 348 mil seguidores; no canal do Youtube, 204 mil inscritos — e mantém videoaulas de culinária, no curso Elisa Ensina.

Apesar disso tudo, provavelmente é outro motivo que faz seu nome ressoar a seus ouvidos — e que move os algoritmos da internet. Em 2014, ela foi a vencedora da primeira temporada do programa Masterchef Brasil, hit instantâneo da TV aberta brasileira ao reunir um time de personalidades fortíssimas em seu júri: a argentina Paola Carosella, o francês Erick Jacquin, e o brasileiro Henrique Fogazza.

Depois da experiência na França, há dois anos, Elisa voltou ao Brasil. Teve uma rápida passagem pelo Epice, do chef Alberto Landgraf (que hoje comanda o moderníssimo Oteque no Rio de Janeiro), e depois criou um projeto itinerante chamado Ocupa, em que promovia jantares harmonizados com vinho principalmente para empresas que compravam lotes de ingressos. “Sentia necessidade de falar com o público final, por isso abri mão do projeto”, conta.

Hoje, à frente da pequena cozinha do Clos (tem uma equipe micro de quatro pessoas), é como se ela estivesse quase em casa, servindo convidados: o salão comporta apenas 12 pessoas e o menu é delicado e mais enxuto que o de um restaurante, feito sob medida para dividir o protagonismo com os rótulos de vinho servidos na casa.

Para Elisa, esse passado é tanto bênção quanto maldição. Ela diz que é difícil não olhar para o programa com gratidão, afinal foi graças a ele que foi estudar em Paris, na conceituada Cordon Bleu, e posteriormente trabalhou na cozinha do chef Alain Ducasse no Plaza Athenée, um dos hoteis mais luxuosos do mundo. Mas é também fonte de certo preconceito no meio gastronômico. “No começo, era motivo de chacota. Mas eu não me importo e sou segura em dizer que o programa traduziu uma série de elementos da gastronomia para o público, ao falar de tratamento, insumos, e chefs”, afirma.

O salão do Clos, na Vila Madalena (SP), que comporta apenas 12 clientes por vez. Elisa faz pratos para acompanhar as 150 opções de vinho em taça

“Estou feliz e realizada de dar esse novo passo dessa forma. Fico resistente em botar para fora minha alegria e realização nesse momento de desgoverno, de crise sanitária internacional. Mas esse restaurante foi feito muito no zelo, com o sócio que eu queria [Guilherme Mendes, da importadora Vinho Mix]. E agora vou me permitir expressar minha alegria”, afirma Elisa à Gama na entrevista a seguir.

Temos que olhar com receptividade para a comida autoral dos chefs mais jovens, que une comida brasileira à expressão de identidade

  • G |Como é chefiar sua própria cozinha?

    Elisa Fernandes |

    É um sonho. Mas tem sido bem desafiador em função do momento da pandemia, com todos os protocolos de higiene, especialmente no tipo de serviço que podemos oferecer. São 12 pessoas por serviço, 24 no total. Por um lado, é um fôlego para a cozinha que nos permite comunicar que idealizamos, mas ainda assim não vejo nada de positivo, é uma tragédia internacional.

  • G |É curioso que você esteja à frente da cozinha de um bar de vinhos, e não um restaurante.

    EF |

    Seria pouco modesto da minha parte falar que é meu restaurante quando temos o maior portfólio de vinhos em taça do país. Optei por fazer menu enxuto para conversar com vinhos que a gente tem. Nós queríamos dar continuidade a cultura de consumo de vinho de forma descontraída e leve. Apesar de ter vinhos acessíveis e mais caros, a gente quer que o cliente venha de calça jeans e chinelo se quiser. Se quiser só beber, tudo bem; se quiser só comer, tudo bem. A minha identidade de cozinheira é de uma cozinha delicada, de bistromie; não viso estrela Michelin, mas não faço comida do dia a dia. Eu gosto desse conceito porque casa bastante com a ideia de uma comida simples e elegante que acompanha vários vinhos diferentes.

  • G |E abrir um novo negócio na pandemia enquanto tantos outros estão fechando. Deu medo?

    EF |

    Sempre quis fazer algo que fosse pequeno. Menu enxuto, poucas mesas. Estávamos com esse imóvel há um tempão, mas decidimos esperar, observamos, sondamos. Quando sentimos que era a hora, fizemos treinamento com empresa especializada em higiene, com equipe, gestores, todo mundo passou por treinamento muito detalhada o de como lidar com a covid. Nos adaptamos muito bem. Medo não é bem a palavra, mas claro que a gente fica vigilante e mais atento que o normal para contornar o momento. Para quem trabalha com cozinha, tirando o uso da máscara, a gente não teve altas transformações. Eu sempre dei banho em tudo o que chegou da rua, tive uma formação muito rígida, quando trabalhei no Plaza Athenée. Tirando as máscaras, no contexto cozinha, eu já estava preparada para lidar com questão da higiene.

  • G |Por que um menu tão enxuto?

    EF |

    Mais legal do que ter uma carta gigantesca é mudar e trazer novidades. Conversa bem com essa ideia de winebar e bistrô. Isso me permite fazer pratos sazonais e orgânicos, com prato e entrada do dia. Tem a ver também com a filosofia do vinho natural, que fica de olho no desperdício. Toda a minha cozinha já é pensada para desperdiçar menos. A gente faz um gravlax com água de tomate fermentado. A polpa vira um pó que usamos em outro prato. Vamos abrir ainda um menu de snacks no bar, com balcão limitado. É um passo de cada vez, estamos abrindo as portas agora e seria imprudente apostar em um formato para o ano interior. A gente não sabe o que vem pela frente.

  • G |Como faz para conciliar a cozinha com o papel de influencer?

    EF |

    Eu acabo trabalhando de diversas maneiras. Vem muita gente que me segue, quer tirar foto, me conhecer — eu tenho dois cursos online, mais de 2 mil alunos, e gosto de conhecê-las. Mas são coisas diferentes: na internet eu estou para contar, compartilhar conhecimentos que adquiri e que são úteis para uma pessoa dar um passo a mais. Eu gosto de ensinar, mas gosto mais de cozinhar. E já me permito fazer uma coisa mais autoral.

  • G |Mas imagino que você deve estar meio afogada para conciliar tudo, não? Você tem uma rede a seu redor?

    EF |

    Estou apanhando e tomando um caldo a cada semana. Quanta coisa atrasada ficou para trás. Estou aprendendo e trabalhando em dobro. Tenho dois cursos online e tem uma equipe de marketing digital que faz esses cursos acontecerem. E tive que dar um break no Youtube, que tem que ser muito profissional e agora não faz sentido ter equipe. Contratei uma pessoa para me seguir e fazer conteúdo para as redes, em captação livre. É uma filmmaker e fotógrafa que vem aqui, capta cenas orgânicas e envia para minha equipe para pensar nos conteúdos comigo e criar histórias. Tenho percebido que os formatos que eu trabalhava antes eram mais engessados, tem que trazer mais realidade.

  • G |Ainda sente algum tipo de preconceito por ter vindo do Masterchef?

    EF |

    Estou há mais tempo trabalhando com grandes nomes da gastronomia, não sinto esse peso de ter surgido no programa. Acho até que frustro o público que espera uma maior relação minha com o Materchef, mais do que consigo manter. Hoje em dia, depois de tudo o que passei, as pessoas já sabem do que sou capaz e do que construí.

  • G |Quem são suas principais referências, os chefs que admira?

    EF |

    O Alain Ducasse é meu mentor. O legado que ele deixou em nível macro, de como formou uma rede de colaboradores, é surreal e muito inspirador. Na mesma linha, mas em escala diferente, obviamente, a Renata Vanzetto também conseguiu isso. Outra referencia forte pra mim é o Alberto Landgraf (que me deu a primeira oportunidade real na cozinha), que tem uma simplicidade elegante e uma forma de trabalhar os insumos que me chama muita atencao. Antes da pandemia eu viajava para o Rio só para comer a comida dele. E o trabalho de vinhos que o Leo [Silveira, do Oteque] faz também é bem inspirador aqui pro Clos. Admiro muito também a Manu Buffara. Acho que a Bel Coelho faz um trabalho de pesquisa muito importante, que é uma ode ao Brasil. Gosto muito do Rodrigo Oliveira, do Mocotó, e não tem como dizer que o Alex Atala não é um divisor de águas. Meu restaurante favorito em São Paulo é o Chou, da Gabriela Barretto. Lá fora, gosto muito do trabalho do Daniel Humm, do Eleven Madison Park.

  • G |Como você vê a gastronomia feita no Brasil hoje?

    EF |

    Ainda vivemos um certo conflito entre o que seria uma alta gastronomia e a comida sem frescura, e acho que é um infeliz questionamento. A gente tem a alta gastronomia acontecendo, com a Manu Buffara abrindo restaurante fora do Brasil; chefs estrelados como o Luiz Filipe, do Evvai, a Helena, do Maní, mil chefs fazendo acontecer de forma bonita. O que gostaria de ver é esse caminho de cozinha autoral, que não tem pretensão de estrela, mas que não precise levantar a bandeira da cozinha sem frescura. Vejo isso no Petí e no Corrutela, que fazem comida que remete ao prato feito, mas que flerta com esses dois mundos, usa produtos de origem. Precisamos falar que o cogumelo de Santa Catarina, o feijão de Belém, o tucupi do Amazonas, o queijo da Serra das Antas são incríveis. Temos que olhar com receptividade para essa comida autoral dos chefs mais jovens, que têm de fato feito esse meio termo de comida brasileira e expressão de identidade própria. Temos que falar da origem dos produtos, construir uma cadeia de respeito.

  • G |O que você faz nesse sentido no seu menu?

    EF |

    Tem o robalo com vinagrete de Santarém e falso acarajé, por exemplo. Eu faço um vinagrete, que é um acompanhamento comum no Recife nos pratos com carne de sol, mas que chamo de tartare porque é mais sequinho. Essa combinação muito nordestina é acompanhada de mousse que tem referências francesas. É a forma de expressar, resgatando produto com bases que geram um flerte entre os dois mundos. Outro exemplo é a patachoux com creme de milho: eu sou do interior onde come-se muito milho, foi meu jeito de usá-lo num contexto mais sofisticado, um prato que tem cara de francês, mas gosto caipira e que é quase uma apropriação da minha cultura pela que aprendi. Gosto de olhar dessa maneira mais holística.

  • G |Seu cardápio realmente une muitas referências, patachoux, gravlax, burrata. Você pode comentar essa mistura?

    EF |

    Gosto de cozinhar aquilo que gosto de comer e quis ser eclética nas referências — do vinagrete de Santarém, à redução de Vin Jaune, que tem a ver com os vinhos de Jura [uma das apelações de origem francesas mais festejadas pela turma do vinho natural] –, quis justamente fazer essa mistura de coisas familiares e surpreendentes. As pessoas falam nossa, esse vinagrete eu conheço, mas essa mousse do que é? Eu sou brasileira que aprendeu a cozinhar na França; quero resgatar ingredientes, mas com identidade que passa pelo francês. A burrata foi algo que trouxe para agradar as pessoas mesmo, mas também aí eu quis trazer minha identidade, tinha que ser diferente das que vemos de São Paulo, que são napolitanas. Fui para um lugar do veluté, do espinafre, do vegetal. Me identifico de amargor vegetal, do gosto de clorofila.

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