Não há mais Basquiat — Gama Revista
Conversas

Não há mais Basquiat

Uma conversa por WhatsApp com Samuel de Saboia, recifense que, aos 22 anos, abre sua primeira individual na Suíça. No papo com a também artista Igi Ayedun ele fala de sua trajetória e do fortalecimento de sua identidade como artista

Igi Ayedun 06 de Junho de 2020

Uma das coisas mais lindas na juventude é o brilho no olhar de quem ainda quer o mundo devorar. Essa é a memória do meu primeiro encontro com Samuel de Saboia, quando ele tinha seus dezoito anos e já carregava em suas pupilas a cartografia do universo que estava disposto a conquistar. Pessoalmente, a convivência entre dois artistas é um roteiro de intensidades e emoções oscilantes. Entre Marrocos, Brasil e Paris as nossas histórias já são incontáveis, mas há no senso comum das nossas conexões identitárias mil razões que nos transcendem e que nos fazem sempre seguir juntos. Nada mais importa.

Samuel, 22 anos, recifense, o mais velho de todos irmãos, artista visual, potência multimídia que une todas as suas habilidades geracionais entre a pintura, o vídeo, a dança, a música e a escrita em novos modos de expressão artística. Na convergência de imaterialidades materiais, avança gradualmente na sua trajetória precoce de ascensão. Neste sábado (06/06), o jovem abre a sua primeira individual na Suíça, no Centro de Arte Contemporânea Löwenbräukunst, em Zurique. “A Bird Called Innocence”, título da exibição, fala sobre os relatos de um processo de maturidade sob a perspectiva dos questionamentos de vida e morte. Isso por meio de uma série focada em grandes formatos, em que os traços e texturas contínuas de Saboia vão se expandindo ao encontrar novas possibilidades. Algo que, aos poucos, o distancia da expectativa clichê elitista sobre como um trabalho de arte oriundo de um artista latino-americano, racializado, dissidente deve ser.

A genuidade faz parte da trajetória do autoconhecimento e estamos, definitivamente, testemunhando esse processo. Correspondendo ao apego figurativo-imagético default de sua geração e do tempo em que vivemos, as pinturas de Samuel — sobretudo quando gigantes — traduzem sonhos despertos em meio à confluência de paisagens, seres, silhuetas sinestésicas, onde a cor se revela um risco de composição sem hesitações, “O sonho é maior que o medo de passar vergonha”, me diz Saboia. E talvez seja o poder de cognição associativa da Geração Z que o permite integrar mundos até então desconexos dentro de um senso de liberdade desafiador.

Inclusive, nesse tipo de trabalho, a lógica comum não faz parte de seu painel de prioridades. Havendo assim um espaço preenchido pela sensibilidade de veias espirituais, irrevogavelmente conectado ao processo criativo de Saboia. É lindo ser grande, mas mais poético é te ver crescer. Tomem nota.

O artista brasileiro Samuel de Saboia posa em frente a obra que estará na exposição individual “A Bird Called Innocence”, que acontece no Centro de Arte Contemporânea Löwenbräukunst, em Zurique

[18:19, 02/06/2020] Igi: Oi bb tudo bem?
[18:19, 02/06/2020] saboia: oiii graça e paz irmã. ça va?
[18:20, 02/06/2020] Igi: Ça va très bien. O mundo tá de cabeça pra baixo, né? Mas quando esteve ao nosso favor? Kkkk
[18:21, 02/06/2020] saboia: A favor a favor nunca né kkk, apenas entre os nossos, quando a lavagem cerebral não afetou tanto que acabamos lutando entre nós mesmos e esquecem o real inimigo. Mas continuamos com as táticas, encontrar casa em si mesmo e descanso em nossos ancestrais.

[18:25, 02/06/2020] Igi: Affe, simmmmm!!!!! Mas, sabe que eu to muito mais num mood de validação e afirmação do que negação? Então… vamos falar de coisa boa? Me conta dessa exposição, menino!
[18:26, 02/06/2020] saboia: é uma série nova feita entre Recife e Zurich chamada “A Bird Called Innocence”, que consiste em 19 peças. 10 pinturas e 9 esculturas. Um trabalho que tem como base a alegria, celebração da vida e sonho. Começou de um local super delicado… E tenho sentimento total que desabrochou.

[18:27, 02/06/2020] Igi: Como assim de um lugar delicado, migo?
[18:28, 02/06/2020] saboia: No meu primeiro dia em Zurich fui avisado que meu avô faleceu! Um homem lindo, sabe? Representante e patriarca de uma família preta, dono de um senso de humor absurdo haha. Cheguei aqui achando que o veria mais uma vez. Foi daí que veio o título,“Um Pássaro Chamado Inocência”. O ato de pegar o avião achando que iria vê-lo de novo.

[18:31, 02/06/2020] Igi: Nossa, essa sua foto no meio da tela é um universo, vc acha isso tá relacionado com a forma que vc enxergava ele ou a presença dele na sua vida? É difícil alguém relacionar um avô com inocência, não?
[18:32, 02/06/2020] saboia:
É pelo jeito dele, avô preto, baiano, a gente ia visitar e ele comprava refrigerante no engradado dizendo que neto dele não bebia água kkkk. Sobre a presença foi sempre telefone e aí qnd nos víamos era festa. Muita comida e contavam-se as mesmas piadas e histórias e sempre aumentavam detalhes. [18:33, 02/06/2020] saboia: Tem um tanto, sim. Uma ligação com o espiritual, o universo que somos e expandimos quando passamos de plano… Ele era muito figura esse velho

[18:35, 02/06/2020] Igi: Você sempre recorre a espiritualidade em suas narrativas desde o comecinho, como você enxerga isso hoje em dia? Acha que ainda há espaço para ser espiritual?
[18:37, 02/06/2020] saboia: Sempre foi natural. A espiritualidade é tão importante quanto outras narrativas e vivências que tenho, ela me torna quem eu sou, eu sou um produto de Fé, dos sonhos dos meus pais, uma manifestação de Deus. Então no fim é continuar com meu vocabulário comum

[18:39, 02/06/2020] Igi: Nessa exposição, vc está trabalhando com formatos maiores. Como está sendo esse processo de se caber dentro das telas?
[18:39, 02/06/2020] saboia: To me encaixando como dá. Todas as telas foram criadas com tamanhos que me vieram à cabeça e foi lindo ver como tudo orna, que hoje quando fui tirá-las do estúdio passaram todas certinho pelas portas com diferenças de um centímetro. A maior tela tem quase 4 metros, a menor tem 20 centímetros, sempre senti a necessidade de espaço e talvez trauma do quarto de quando eu era pequeno.

[18:45, 02/06/2020] Igi: Entendi, tem um lance também bem nítido no seu novo trabalho que é o distanciamento de alusões ao graffiti… me conta? O que está alimentando essa nova desenvoltura? Emocional, maturidade ou estética?
[18:47, 02/06/2020] saboia:
São novas maneiras de expressar, com o crescer e expandir. Eu, agora, consigo dar tempo a minha criação. No começo o spray permitia a velocidade. Eu precisa ter dinheiro pra comer em São Paulo. Hoje consegui transformar esses pontos em estudos, em retratos de um passado que foram também responsáveis em permitir um futuro. Na desenvoltura é um combo: minha mente, alma e espírito também necessitam de alimento e sigo diariamente a transformar. Cada tela diferente é mais um Samuel que encontrou um meio de falar.

[18:53, 02/06/2020] Igi: Interessante isso sobre o passado para o futuro. Me explica melhor como isso se aplica nas suas práticas?
[18:54, 02/06/2020] saboia: Tenho misturado muitas bases diferentes. Tinta para tecido líquida, verniz brilhoso, laca, pigmento de ouro e uma gama de diferentes marrons e pretos para definir reais cores para as peles. A preparação de camada também mudou, hoje consigo decidir o quão espesso ou transparente quero que o fundo seja. [18:56, 02/06/2020] saboia: No começo era a cor como vinha do pote haha, hoje a gente conhece meios para a tinta ficar diluída por mais tempo e o processo de usar as mãos e pintar no chão continua. Assim como a conversa, eu sempre converso com as telas, elas dizem o que querem ser.

[19:01, 02/06/2020] Igi: E como tem sido essa adaptação à realidade e aos mercados europeus?
[19:02, 02/06/2020] saboia: Mais fácil do que eu imaginava, a rota ainda é a mesma, precisa de x de talento e y de sorte (aka contatos). Eu consegui ir explorando de pouco a pouco, então primeiro fui pra Europa a esmo e enfiando a cara mesmo. O sonho é maior que o medo de passar vergonha. Com a benção de Deus e um francês quebrado consegui a primeira exposição e aí agora tá seguindo fluxo. Mas je parle très bien maintenant.. [19:04, 02/06/2020] saboia: Em parte, o saber onde eu quero chegar e não tomar as dificuldades de acesso como razão para não agir me dão força para continuar a fazer. Essa exposição já está sendo melhor que a última.

[19:04, 02/06/2020] Igi: Quanto tempo faz que vc tá por aí mesmo?
[19:06, 02/06/2020] saboia:
Desde de 2018 essa é minha quinta vez aqui, fazendo um anooooo. O lance é que eu vou, passo três meses e sigo rumo, artista nômade total, mas agora o coração tá começando a pedir pra ficar.

[19:08, 02/06/2020] Igi: Ficar onde?
[19:08, 02/06/2020] saboia:
pode ser metade em Paris metade em Los Angeles?

[19:09, 02/06/2020] Igi: Kkkkk, pode. Mas Samuel me conta uma coisa… Você é o mais velho entre seus irmãos, como é a relação deles com o desenvolvimento da sua carreira? Você acha que você é um portal geracional para a história da sua família?
[19:10, 02/06/2020] saboia: É muito massa ver a união, carinho e força que eles tem e representam. Nos últimos ataques [racistas, pelas redes sociais] vi minha irmã passar semanas acordada indo atrás de que cada pessoa que falou algo…meu irmão caçula um poço de sabedoria. Eles sentem e sabem que os sonhos deles se tornam cada vez mais reais porque estamos a todo tempo nos levantando em comunhão. [19:12, 02/06/2020] saboia: No começo meus pais não entendiam muito, hoje enquanto montava a exposição na Löwenbräu Kunst meu pai fazia FaceTime pra mostrar pra o pessoal da empresa. Tem muita alegria e manutenção de amor lá em casa e sei bem que esse é um dos fatores que me permitem estar aqui.

[19:15, 02/06/2020] Igi: Nossa, teve isso tbm… você se tornou um alvo espontâneo da mídia conservadora de forma pública. Como você se sente com isso?
[19:18, 02/06/2020] saboia: São ecos de informação, dá dois dias vem um ou outro pedir desculpas pelo que falou, no fim eu ignoro e continuo fazendo melhor, alcançando e tornando reais novas possibilidades.

[19:20, 02/06/2020] Igi: Como vc sente isso em relação ao que vc representa? Todas essas agressões em relação a nossa comunidade.
[19:21, 02/06/2020] saboia: Gosto de proteger o lado pessoal e vejo a cada dia com o crescer que isso é um luxo um tanto raro no agora. O mundo tá sempre devorando. Pedindo mais, mostra mais, fala mais. Me lembra a Vênus Negra. Então aprendi a virar casulo, sumir quando preciso e voltar em paz e mais potente. Enquanto artista é seguir aprendendo o equilíbrio, me deixar livre para criar. Primeiramente, pra mim, quando a gente faz algo pra si, a gente faz com cuidado [19:24, 02/06/2020] saboia: Mas to novo ainda, às vezes me cobro demais, ou desanimo, também tenho minhas fases kkkk a lua tá onde agora?

[19:24, 02/06/2020] Igi: Acho que isso tem a ver com internet tbm, né? Inclusive, deixa eu te perguntar uma coisa… Você é um artista que ganhou projeção de mercado por causa da internet e a gente sabe que no meio das artes isso nunca foi uma coisa muito aceita. Mas hoje com o distanciamento social TODO MUNDO precisa, inclusive nas artes, entender como se posicionar na internet. O que vc acha disso?
[19:27, 02/06/2020] saboia:
Reprodução sem informação não se sustenta, vivemos uma época onde uma hashtag ou uma foto ecoam como uma lição para a moral universal. Mas do que vale quando estão vazias de ações? Nós só podemos ser algo quando aceitamos o desafio de passar pelas rotas necessárias para se tornar esse algo. É um processo de aceitar essa caminhada e ter atenção de lutar sem se perder.

[19:36, 02/06/2020] Igi: Você ainda acredita que a internet pode ser uma impulsionadora da carreira de jovens artistas como foi pra sua? Ou vc acha que tudo virou, sei lá, um limbo?
[19:39, 02/06/2020] saboia:
A internet pode se tornar um passaporte, mas é isso, as histórias não se repetem exatamente da mesma forma. Logo, para casa pessoa que use as mídias, ela ainda necessita encontrar uma rota própria.

[19:47, 02/06/2020] Igi: E as suas perspectivas de futuro? Como elas estão nesse mundo tão estranho pra geração Z?
[19:47, 02/06/2020] saboia: O que não invalida nenhuma das duas narrativas, estamos há tanto tempo sendo vistos e explanados em grupo que às vezes esquecemos nossas individualidades. Antes eu criava através e a partir do medo, hoje eu manifesto vida através das minhas criações. O mundo sempre foi estranho e eu só vivia dentro de mais bolhas. Vemos o céu através da camada de ozônio, mas para enxergar o universo necessitamos aceitar o frio e a grandeza que existe. Vivemos de contrapontos e equilíbrios.

[19:53, 02/06/2020] Igi: O que você imagina pro mundo depois que a pandemia passar?
[19:55, 02/06/2020] saboia:
Humanidade, creio em nossa volta para o bem, se a gente não conseguir acabar com as bolhas quero força suficiente para torná-las enormes e colocar todos os que precisam de aconchego. A gente nasceu em guerra…agora quero viver em paz!
[19:57, 02/06/2020] Igi: ? ? ? ?

Igi Lola Ayedun é paulistana, tem 30 anos e trabalha como creative designer, é artista multimídia e fundadora da residência-galeria de jovens artistas latino-americanos HOA ART. Atualmente, é líder de criação e conteúdo da revista independente MJOURNAL. No mercado da moda, nos últimos 15 anos, já colaborou com títulos como ELLE, Estilo, L’Officiel, FFW, Rede Globo, Marie Claire, I-D magazine, entre outros.

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