Carne é coisa de homem e salada coisa de mulher? — Gama Revista

Comida e bebida

A história de como a carne virou coisa de homem e a salada coisa de mulher

©Gettyimages
Por Martin La Monica* 29 de Março de 2020

Quando ficou decidido que as mulheres preferem alguns tipos de comida – iogurte com frutas, salada, vinho branco – e que o gosto dos homens deveria girar em torno de chili (carne com feijão apimentado), bife e bacon? Em meu novo livro, “American Cuisine: And How It Got This Way” (“Cozinha americana: e como ela se tornou o que é”, sem tradução no Brasil), eu conto como essa ideia de que mulheres não fazem questão de carne vermelha e preferem saladas não surgiu do nada.

Desde o começo do século 19, uma enxurrada de conselhos, propagandas corporativas e artigos de revista criou uma separação clara entre o paladar masculino e o feminino. Uma divisão que, por mais de um século, tem moldado desde os planos para o jantar até o design dos menus.

Um mercado separado para as áreas das mulheres

Antes da Guerra Civil Americana, todos os membros de uma família comiam as mesmas coisas juntos. Os manuais domésticos e livros de receitas mais vendidos de então não indicavam um paladar específico dos maridos. Mesmo que “restaurantes para damas” – espaços separados para mulheres desacompanhadas – fossem comuns, eles serviam os mesmos pratos oferecidos no salão dos homens: miúdos, cabeça de vitela, tartarugas e carne assada.

Desde os anos 1870, a modificação de algumas normas sociais (como a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho) passou a oferecer a elas mais oportunidades de jantar sem os homens, na companhia de amigas e colegas de trabalho. Por mais que passassem mais tempo fora do lar, porém, ainda era esperado que se reunissem em lugares específicos para o gênero delas.

Redes de restaurantes orientados para mulheres, como Schrafft’s, proliferaram, criando lugares seguros (e sem álcool), nos quais as mulheres podiam comer sem ter de vivenciar a desordem dos cafés proletários ou dos “free-lunch bars”, em que os trabalhadores conseguiam almoçar de graça desde que comprassem uma cerveja (ou duas ou três).

Foi durante essa época que a noção de que algumas comidas eram mais apropriadas para as mulheres começou a surgir. Colunas de aconselhamento em jornais e revistas identificaram o peixe e as carnes brancas com pouco molho, assim como novos produtos industrializados (como o queijo cottage), como “comida de mulher”. E, claro, havia as sobremesas e doces, aos quais as mulheres supostamente não resistiriam.
Tal mudança foi vista, por exemplo, nos menus do Schrafft’s, onde havia uma lista de pratos principais leves, acompanhados de sobremesas elaboradas com sorvete, bolo ou chantili. Muitos menus traziam mais opções de sobremesa do que de entradas.

No começo do século 20, a comida feminina era comumente descrita como “guloseima”: bonita, enfeitada, mas que não alimentava. Revistas femininas traziam anúncios do que seriam típicos alimentos femininos: saladas, criações coloridas e cintilantes à base de gelatina, coco ralado e cerejas ao marasquino.

Ao mesmo tempo, alguns autointitulados “advogados dos homens” passaram a reclamar que as mulheres eram desesperadamente fãs desse tipo de comida decorativa, justamente o que estava sendo propagandeado para elas. Em 1934, por exemplo, um escritor chamado Leone B. Moates escreveu um artigo para a revista “Casa & Jardim” repreendendo as esposas por servir aos maridos “um pouquinho de marshmallow batido com tâmaras”. Reservem essas guloseimas para o almoço das damas, implorou, e sirvam a eles as comidas com “sustância” que querem: goulash, chili ou um mexido de carne em lata com ovos poché.

Agradando ao paladar masculino

Escritores como Moates não eram os únicos a exortar as mulheres a priorizar o marido. O século 20 viu uma proliferação de livros de receitas que tentavam convencer as mulheres a deixar suas comidas favoritas de lado e focar em agradar ao namorado ou marido.

A ideia central que imperava em todos esses títulos era a de que, se as mulheres falhassem em satisfazer o apetite do marido, eles iriam embora. Isso era estampado nos anúncios da metade do século, como o que mostra um marido irritado dizendo: “Mamãe nunca deixou os sucrilhos Kellogg’s acabar”. Tal medo era explorado desde 1872, quando foi publicado um livro de receitas chamado “How To Keep A Husband, or Culinary Tactics” (“Como manter um marido ou táticas culinárias”).
Um dos livros de receitas de maior sucesso, “‘The Settlement Cook Book”, publicado primeiramente em 1903, tinha como subtítulo “The Way to a Man’s Heart” (“O caminho para o coração de um homem”). Logo se juntaram a eles coletâneas de receitas como “A Thousand Ways to Please a Husband” (“Mil maneiras de agradar a um marido”), de 1917, e “Feed The Brute” (“Alimente o bruto”), de 1925.

Esse tipo de marketing claramente surtia efeito. Nos anos 1920, uma mulher escreveu à porta-voz ficcional da General Mills, “Betty Crocker”, expressando seu medo de que a vizinha “capturasse” seu marido com seu bolo de chocolate.

Enquanto as mulheres eram ensinadas que precisavam focar no paladar do marido em detrimento do seu – e ser excelentes cozinheiras –, os homens diziam não querer que a esposa se devotasse apenas à cozinha. Como Frank Shattuck, fundador do Schrafft’s, observou nos anos 1920, um homem jovem contemplando a ideia de casamento procuraria uma garota que fosse, além de tudo, boa companheira. Um marido não quer chegar em casa e encontrar uma esposa desgrenhada que passou o dia todo no fogão, escreveu. Sim, ele quer uma boa cozinheira; mas ele também quer uma companhia atraente e “divertida”.

Era um ideal quase impossível. E os publicitários capitalizaram em cima das inseguranças criadas por essa dupla pressão – ter de agradar ao marido sem parecer que se esforçaram demais para isso. Um folheto de 1950 de uma empresa de utensílios de cozinha retratava uma mulher com um vestido decotado e um colar de pérolas mostrando ao marido, agradecido, o que o aguardava no forno para o jantar. Graças a seu novo e moderno fogão, a mulher no anúncio conseguira agradar ao palato do marido sem verter uma gota de suor.

Os anos 1970 e além

O jantar mudou dramaticamente a partir dos anos 1970. As famílias passaram a gastar mais dinheiro comendo fora. Mais mulheres trabalhando (e não só no lar) significava que as refeições seriam menos elaboradas, especialmente porque os homens continuaram detestando dividir a responsabilidade de cozinhar.

O advento do micro-ondas encorajou alternativas ao jantar tradicional em torno da mesa. E o movimento feminista destruiu as lanchonetes voltadas apenas para mulheres, como Schrafft’s, além de solapar a imagem da dona de casa feliz preparando seu ensopado de forno com sopa enlatada ou aquele frango Yum Yum.

Ainda assim, como afirmam os historiadores da gastronomia Laura Shapiro e Harvey Levenstein, apesar dessas mudanças sociais, a representação do paladar de homens e mulheres no mundo da propaganda continuou surpreendentemente consistente, mesmo com a chegada de novos ingredientes e alimentos a esse mix. Couve, quinoa e outras manias de alimentação saudável são geralmente rotuladas como femininas. Churrasco, bourbon e comidas ousadas, por outro lado, fazem parte do domínio dos homens.

Um artigo de 2007 do New York Times indicou a nova tendência de jovens mulheres pedirem um bife no primeiro encontro. Mas não se tratava de uma expressão de igualdade de gênero ou uma completa rejeição aos estereótipos sobre a comida. Em vez disso, “a carne é uma estratégia”, dizia o autor do texto. O pedido sinalizava que as mulheres não eram obcecadas com saúde ou dieta – uma forma de assegurar aos homens que, se o relacionamento florescesse, a namorada não começaria a ditar o que eles deveriam comer.

Mesmo no século 21, ecos de livros de receitas como “O Caminho para o Coração dos Homens” ainda ressoam, sinal de que há muito trabalho pela frente antes que a ficção de que algumas comidas são para homens e outras para mulheres desapareça.

*Publicado originalmente em The Conversation, em inglês. Tradução: Willian Vieira

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