'Não é sopa', já dizia Nina Horta — Gama Revista
Comida e bebida

‘Não é sopa’, já dizia Nina Horta

Maior cronista da cozinha brasileira na virada do século, ela ganha reedição de seu primeiro livro e um curso que analisa a sua obra. Gama mostra objetos significativos para conhecer a sua vida

Isabelle Moreira Lima e Willian Vieira 30 de Outubro de 2020
Jade Gadotti

Nina Horta é a exceção que confirma a regra, a unanimidade inteligente entre os apaixonados pela literatura de gastronomia brasileira: foi a maior autora de livros sobre comida do país. E agora, no mês que marca um ano de sua morte, sua obra é celebrada com duas iniciativas — um curso montado em torno de sua escrita e a reedição de seu primeiro livro pela Companhia de Mesa, selo de gastronomia da Companhia das Letras.

Lançado originalmente em 1995, “Não é Sopa” é uma coleção de crônicas publicadas no jornal “Folha de S.Paulo” ao longo de uma década. Não é exagero dizer que a obra é a pedra fundamental de um estilo de livro de cozinha; mais do que reunir receitas, é literatura sobre a mesa brasileira. É claro, as receitas estão ali, mas o protagonismo é indiscutivelmente o olhar de Nina Horta. Como ela mesma escreve à mão na nova edição, “cuidado, não é um livro de receitas. É de pessoas, lugares, manias, modas, costumes”.

Esses escritos em sua caligrafia permeiam o livro inteiro. É como se fosse uma conversa entre a Nina de 1995, a da primeira edição, e a de 2019, que trabalhou como revisora de si mesma, atualizando e comentando suas ideias mais antigas. Esse é o maior presente da nova edição, ler comentários, em uma letra cursiva de professora, como “não acreditem quando dizem que Proust é chato. É maravilhoso. E há nele um tratado de comer bem”; “Implicância nova: celular ao lado do prato”; e até uma pergunta curiosa: “qual o antidepressivo do momento?”

‘Não é Sopa’ é uma espécie de livro de história, ao retratar costumes de uma época e em uma área que mudou de maneira tão rápida

“Não é Sopa” é também uma espécie de livro de história, ao retratar costumes de uma época e em uma área, a gastronomia, que mudou de maneira tão rápida. Influenciou pessoas importantes na cena da comida, como a cozinheira, apresentadora e também autora Rita Lobo, maior superestar da cozinha brasileira atual. No dia da morte de Nina, em 7 de outubro do ano passado, ela escreveu em seu Instagram: “Para muita gente, Nina Horta foi a maior cronista de comida do Brasil. Para mim, ela foi muito mais. (…) ‘Não é Sopa’, seu livro que ganhei de presente da minha mãe em 1995, mudou o meu jeito de olhar para a comida, mudou o meu jeito de entender a vida”.

“A Nina representa a primeira quebra consistente de como a comida era retratada na imprensa, deixa de ser restrita à receita”, disse à Gama a jornalista Luiza Fecarotta, especializada em gastronomia, que no início da carreira tornou-se uma interlocutora de Nina no jornal. Era ela quem recebia as crônicas e tinha que cortá-las.

Estilo comezinho e erudito

“Nina sempre tratou a comida como algo muito comum, comezinho, mas com uma erudição, com uma profundidade e com um repertório linguístico muito surpreendente. A obra dela é ao mesmo tempo de uma oralidade simples, que aproxima do leitor, e capaz de revelar as camadas sensoriais da comida, dar a dimensão do perfume, do tato, da consistência e da estética, uma vez que os textos não eram acompanhados de foto, mas de ilustrações”, afirma. Luiza cita as onomatopeias, interjeições, e o repertório de metáfora de Nina (o fermento, por exemplo, é “o viagra dos suflês falidos”), como grandes riquezas linguísticas que marcam seu estilo.

E quem pode ser irônico? Só quem tem repertório muito afiado

Para a jornalista, faz muito sentido relançar o livro, trata-se de uma obra perene. Embora a crônica seja a escrita do cotidiano, feita para “embalar peixe” a de Nina se sustenta pelo tempo porque é sobre a comida de alma, aquela que sobrevive ao tempo. Além disso, apesar da imagem de velhinha fofa, Nina tinha um humor único. “Era debochado, com ironia. E quem pode ser irônico? Só quem tem repertório muito afiado”, afirma. E é esse repertório que torna a obra ainda viva, atual.

Luiza montou em outubro um curso com quatro aulas que discutem a escrita dos sentidos, a riqueza da narrativa de Nina e sua literatura de costumes. Sua expectativa era de fechar a primeira turma com cinco alunos. Em menos de um dia e meio ela tinha 40 inscritos e uma fila de espera, que justificou uma segunda turma. As inscrições ainda estão abertas e ela deve seguir formando mais turmas.

Biografia em cinco objetos

Meses antes de Nina morrer, mas quando já estava internada no hospital, Gama pediu que a autora escolhesse objetos que fossem significativos para entender um pouco de sua biografia. O jornalista Willian Vieira ficou encarregado da missão e teve o auxílio da filha de Nina, Dulce. Os textos de Vieira e as fotos de Marcos Vilas Boas estão abaixo, junto a informações dadas por Nina em 2019. São itens comuns a várias cozinhas — panelas, cerâmicas, livros — mas que comprovam esse repertório e refinamento sem frescuras tão comentado sobre Nina Horta.

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    Marcos Vilas Boas

    A panela Sarpaneva

    Com ela, Nina cozinhava de tudo. “Com seu desenho, fica tudo melhor e mais bonito”, disse a Gama. Mas essa não é qualquer panela. Desenhada pelo escritor Timo Sarpaneva para a marca Iitala, “ela se inspira no antigo folclore finlandês”, diz a marca, “rememorando o abrigo na floresta e o cozinhar sobre uma fogueira”. É de ferro fundido por fora e cerâmica branca por dentro, com um utilíssimo pegador de madeira. Virou um ícone tamanho no país que até selo comemorativo ela já estampou. Mas é porque ela cozinha lentamente, no fogão e no forno, mantendo o calor horas depois, que Nina a amava tanto.

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    Marcos Vilas Boas

    Cumbucas a granel

    Foram compradas ao longo dos anos, aqui e ali, “pela beleza dos desenhos”, pela estética cotidiana encerrada na área destinada a beber e comer. “Em Portugal, eles tomam até vinho nos bowls, achei engraçado”, afirmou. Nina obviamente não lembrava a história de cada uma, e pouco importava – as mais de 200 tigelinhas dispostas nas prateleiras da cozinha formavam uma coleção heterogênea e alegre, que servia seu dia a dia.

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    Marcos Vilas Boas

    Aquele conjunto de chá

    “Nos anos 50, escolhi na loja Casa e Jardim do centro um jogo de chá que me acompanharia a vida inteira.” Aos 17, quando estava prestes a se casar, ela conseguiu garimpar a preciosidade marrom de cerâmica. As peças não tinham uma marca famosa, mas chamaram a atenção pela singeleza. “É um jogo antigo com desenho alemão, mas que poderia ter sido desenhado hoje no Japão.” Foram décadas de ritual cotidiano. “Sempre usei.”

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    Marcos Vilas Boas

    A cerâmica-arte de Clarice Cliff

    A ceramista inglesa Clarice Cliff começou a produzir em 1920, cobrindo defeitos de louças antigas com cores e formas geométricas. Aos poucos, destacou-se pelo talento incomum. E ganhou renome com sua coleção de elementos “bizarros”. “É uma artista atrevida e criativa”, disse Nina, que reuniu ao longo da vida 30 peças “escolhidas a dedo” pela riqueza cromática em formas inusitadas – arte para beber e comer. “São as louças mais bonitas que tenho, e as que menos uso.”

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    Marcos Vilas Boas

    Os livros de gastronomia, uma paixão

    Na biblioteca de Nina fulguravam milhares de livros. Mas duas autoras tinham seu coração cativo, pois não só falam de receitas, mas do verdadeiro prazer de cozinhar e comer. Elizabeth David, por exemplo, “mudou a culinária inglesa”. Em 1946, ao retornar do Cairo, ela percebeu a pobreza da culinária britânica após a Guerra e passou a escrever sobre a culinária mediterrânea e seus ingredientes frescos, um mundo de azeite, alho e manjericão. “Italian Food” é dos preferidos de Nina, que duas edições. Já a americana M.F. K. Fischer renovou o modo como se escreve sobre comida – o poeta W.H. Auden disse desconhecer prosa mais bem escrita. “With Bold Knife and Fork” traduz esse jeito tão Nina de falar de comida: não é de técnicas e receitas apenas que se faz a crítica gastronômica, mas de sentimento, paixão, experiência. “Que prazer tenho ao lê-las!”

Produto
  • Não é Sopa
  • Nina Horta
  • Companhia de Mesa
  • 432 páginas

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