Sem hora para comer — Gama Revista

Comida e bebida

Sem hora para comer

Nossas refeições nunca estiveram tão embaralhadas. Os hábitos dos tempos de confinamento mostram que há mais pessoas agindo de acordo com as manifestações de suas fomes — modelo que deve se manter

Rafael Tonon 09 de Abril de 2021

Se há uma coisa que mudou drasticamente com a pandemia foi a forma como passamos a lidar com as nossas refeições. Fechados em casa a maior parte do tempo, até esquecemos como é encostar os cotovelos no balcão para abocanhar um pão na chapa e beber um pingado, encontrar os amigos no almoço sem se preocupar com o tira-e-põe de máscaras, tomar um bem executado coquetel depois de um dia exasperante de trabalho.

De repente, nossas cozinhas acumularam todas essas funções e viraram tudo ao mesmo tempo: padaria, cafeteria, restaurante e bar. Tudo aberto (ironia!) 24 horas por dia. Assim, tomamos vinho cada vez mais cedo, deixamos o almoço para mais tarde, trocamos o jantar por um pote de pipoca, sem problema, que mal tem nisso?

O confinamento e as restrições de mobilidade impostas no mundo todo nos ensinaram que a ideia pré-definida que tínhamos sobre café da manhã, almoço ou jantar parece não fazer mais sentido nesses dias que correm depressa demais — e muito menos em uma sociedade que caminha para uma inevitável fluidez do tempo. Essa ideia de que precisamos estar sentados entre 12h e 14h para acabar com um prato de comida aprontado diante vem se tornando tão questionável quanto uma grande sala de reuniões.

Refeições ocasionais

Pensando do ponto de vista cultural e histórico, as refeições bem estabelecidas são herança da era industrial. Foram pensadas para alimentar os trabalhadores por turnos que saíam das fábricas depois de jornadas estafantes de trabalho essencialmente braçal. Era uma forma de organizar a sociedade — daí vieram os horários de trabalho, das escolas: todo mundo ao mesmo tempo. Mas elas já não se encaixam na nova era da criatividade, em que cada um tem suas rotinas, especialmente com a maior normalização do home office. Evoluímos das refeições eventuais (dos tempos dos nossos antepassados longínquos, que tinham que aproveitar e garantir toda a ingestão de calorias quando venciam uma árdua caçada) para as refeições programadas. Agora, aos poucos estamos assumindo as refeições ocasionais, aquelas que acontecem quando e como queremos.

Há controvérsias do ponto de vista da saúde e da nutrição, mas a pandemia talvez tenha nos ajudado a naturalizar um comportamento menos regrado

Há controvérsias do ponto de vista da saúde e da nutrição, mas o fato é que a pandemia talvez tenha nos ajudado a naturalizar esse comportamento menos regrado. Na casa da empreendedora Patrícia Abbondanza, as rotinas alimentares, que sempre foram muito bem programadas seguindo o ritmo das crianças (um menino de 10 e uma menina de 7 anos) e os horários de trabalho dos pais, se perderam com uma ideia de tempo que se tornou menos relevante com a vida reduzida aos cômodos de um apartamento, no caso deles, um três-dormitórios localizado nos Jardins, em São Paulo.

“Em casa, as crianças comem o dia inteiro, acho que como uma forma de vencer o tédio e a ansiedade de não poderem sair. Almoçamos juntos, mas depois, as refeições se perdem pelo dia”, ela diz. Com o marido, Patrícia resgatou uma rotina que não tinham há anos, de sentar juntos para tomar café da manhã e até jantar. “De certa forma, nós dois ficamos mais regrados por isso. Mas as crianças comem muitas vezes ao dia, e nem sempre jantam”, diz. “Mas tenho aceitado pelo momento”. Um reflexo, talvez, de uma nova geração on demand, que aprendeu que pode ter as coisas quando quer, não quando é forçada a querer.

Um plano B

Nesses tempos em que as escolhas individuais ganham maior peso na sociedade (seja nos âmbitos de gênero ou sociais, por exemplo), as particularidades e características de cada pessoa ganham mais espaço no mar de gente, passando a serem mais respeitadas. E assim, também, seus cronotipos. Há mais de 10 anos, a pesquisadora dinamarquesa Camilla King vem lutando pela ascensão do que chama de Sociedade B. Trata-se de um padrão social que apregoa que nem todo mundo tem o mesmo ritmo biológico — ou seja, os mesmos horários para dormir, acordar, comer. Embasada em pesquisas científicas que indicam que cada um de nós tem horários internos individualizados (e determinados geneticamente), o manifesto lançado por Camilla incita que questionemos o status quo funcional da nossa atualidade. “Queremos uma sociedade mais flexível, onde uma variedade de horários seja socialmente aceita”, defende ela.

A Sociedade B já tem adeptos em mais de 50 países, e está presente na Suécia, Noruega e no Reino Unido. A partir dos preceitos do movimento, há escolas adeptas que já deixaram seus alunos assistirem às aulas em diferentes horários, por exemplo, seguindo os períodos em que são mais produtivos. O mesmo valia para o recreio, claro, quando mais lhes desse fome. Em um estudo de 2014 feito pelos pesquisadores do Centro Nacional de Informação de Biotecnologia (EUA) sobre o funcionamento dos ciclos circadianos, chegou-se à conclusão que o pico da fome para a maioria das pessoas é no final da tarde, e não no café da manhã ou até no almoço, como muitos pensam. Ou seja, ao analisarem a fundo informações biomédicas e genômicas numa amostragem em 12 adultos saudáveis, eles concluíram que por mais de um século temos nos alimentado muito mais de acordo com a nossa organização social do que com nosso próprio organismo.

Sem fechar

Conclusões de estudos como esse aliadas às transformações que a pandemia tem feito acelerar podem nos levar a repensar o funcionamento de muita coisa na nossa sociedade, inclusive a dinâmica dos restaurantes e afins. Será que eles ainda deverão pautar seus horários de abertura conforme nossas rotinas pré-pandêmicas? Ou teremos cada vez mais espaços seguindo a tendência do que os americanos chamam de restaurantes all day, ou seja, aqueles que funcionam de manhã até a noite, sem fechar?

Desde que inauguraram A Casa do Porco, em 2015, no Centro de São Paulo, o casal de chefs e empresários Janaína e Jefferson Rueda resolveu que as portas estariam abertas o dia todo, do meio-dia à meia noite, para que as pessoas “pudessem vir a hora que quisessem”, como explica Janaína. A decisão se mostrou acertada: é uma maneira de grande parte dos clientes não precisar esperar mais de duas horas para poder comer ali, tamanha a popularidade que a casa alcançou. Mas o fato de haver fila também às 15h, às 16h e às 17h, por exemplo, os impressionou. “Ficou claro pra gente que o estômago não tem horário”, ri ela.

Com a experiência aprendida, quando tiveram que fechar as portas de seus empreendimentos (além da Casa do Porco, também o Bar da Dona Onça, o Hot Pork e a Sorveteria do Centro) para conter a disseminação dos casos da covid-19, não pensaram duas vezes: o delivery também deveria seguir “aberto” o máximo de horas possível. “Tem sido ótimo, além de alguns pratos, os sanduíches saem o dia todo, assim como produtos que passamos a vender, como os embutidos, os sorvetes”, conta.

A fome é quem manda

Os hábitos dos tempos de confinamento comprovam que há mais pessoas agindo de acordo com as manifestações de suas fomes — independentemente da hora que se manifestem. No último ano, o iFood, uma das maiores plataformas de delivery da América Latina, notou mudanças no comportamento dos consumidores brasileiros. “Foram observadas novas ocasiões de consumo pelo app em períodos não tradicionais para o delivery, como é o caso da manhã, que teve uma periodicidade em dias de semana com aumento de 260% de março a dezembro de 2020”, informou a empresa a Gama.

Outro período a ser destacado pela plataforma foi o chamado “lanche da madrugada” durante a semana, que saltou 116% nesses mesmos meses. Ainda assim, os horários de pico no almoço e no jantar continuam sendo os mais representativos para os aplicativos. Mas os números têm mudado de forma vertiginosa embalados pela pandemia e pela mudança do senso de tempo que nos acometeu.

Os hábitos dos tempos de confinamento comprovam que há mais pessoas agindo de acordo com as manifestações de suas fomes — independentemente da hora que se manifestem

Também o fato dos restaurantes terem que se adaptar a horários mais restritos nesse período difícil para o setor também ajudou as pessoas a abrirem suas perspectivas com relação aos horários em que comem. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, a obrigatoriedade dos estabelecimentos terem que fechar as portas até as 20h por alguns períodos obrigou clientes a jantarem bem mais cedo do que estavam habituados. “Tivemos muitos clientes que gostaram da experiência, mas pessoalmente um mundo novo abriu pra nós: agora só queremos jantar às 18h”, diz Janaína Rueda.

“É ótimo, todos deveriam criar esse hábito”, completa Jefferson. Para ele, a experiência que se tem nos jantares antecipados é muito mais completa. “Os lugares estão mais tranquilos, o atendimento é quase exclusivo. E quando você vai dormir, a digestão já está até feita. É muito mais positivo para o corpo” conclui. Para uma parte dos cientistas, cada vez mais dispostos a desvendar os nossos cronotipos, ele deveria ser a nossa prioridade. E nos levar a comer quando a fome surge, não quando o refeitório abre.

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