Gravidez e luto solitário — Gama Revista
Isabela Durão

Gravidez e luto solitário

O aborto espontâneo pode desencadear um sentimento de perda profundo. Estamos preparados para acolher esta dor?

Giuliana Bergamo 23 de Fevereiro de 2021

Quem nasce em um corpo biologicamente feminino logo sabe: quando temos pouco mais de uma década, sangramos. E, se sangramos, é porque podemos engravidar. E, se engravidamos, podemos abortar. Duas em cada dez gestações confirmadas podem evoluir para abortos espontâneos, contra os quais não há o que fazer. Estima-se que a frequência pode ser ainda maior (três em cada dez) se levados em consideração os casos que nem chegam às clínicas e consultórios médicos.

Saber o quanto é comum, porém, não nos torna mais preparadas para lidar com ele. Um estudo realizado por pesquisadores do Imperial College London, no Reino Unido, e da universidade KU Leuven, na Bélgica, mostrou que uma em cada seis mulheres que têm a gravidez interrompida precocemente (antes das 12 semanas) manifesta sintomas de stress pós-traumático.

Chamo de luto insólito, pois só a gestante sabe o que ela perdeu

“Perder um filho é sentir uma dor quase insuportável, vivida por tantos, mas falada por poucos”, escreveu Meghan Markle no artigo publicado pelo jornal The New York Times em que contou sobre o aborto que sofreu em meados de 2020, em plena quarentena.

No texto, a duquesa de Sussex narra o que parecia ser uma manhã banal – “Fazer café da manhã. Alimentar os cachorros. Tomar vitaminas…”. Até que sentiu uma câimbra aguda depois de trocar a fralda de seu bebê. De tanta dor, ela caiu no chão, ainda segurando o menino, que então estava com um ano e dois meses. “Eu sabia, enquanto me agarrava ao meu primeiro filho, que eu estava perdendo o segundo”.

“Parecia que estavam rasgando minha carne”

Quem vive um aborto espontâneo pode sentir desde cólicas um pouco mais fortes do que as menstruais, até dores lancinantes, semelhantes às de um parto de fato. Os sintomas costumam ser mais severos quanto mais avançada estiver a gravidez. E vêm quase sempre acompanhados de outro sofrimento, este sem medida, nem hora para acabar: o luto.

É, no entanto, um calvário silencioso, geralmente, vivido de maneira muito solitária. “Chamo de luto insólito, pois só a gestante sabe o que ela perdeu”, diz a psicanalista Vera Iaconelli.

Foi o que sentiu a psicóloga Natália Aguilar. Em 2014, ela ainda nem tinha certeza de que queria ser mãe quando o exame testou positivo. “Ficamos muito alegres, contamos para todo mundo”, diz. Dias depois, percebeu que estava perdendo um pouco de sangue. Não havia muito o que fazer. Afinal, sangramentos nessa fase também podem ser resultado da implantação natural do embrião no útero. Natália fez um ultrassom, que flagrou o saco gestacional, mas foi incapaz de identificar batimentos cardíacos.

“Ali começou meu martírio. Em tão pouco tempo, percebi que queria, sim, ser mãe. Aquele sentimento tinha aflorado em mim”, conta. Dali a alguns dias, um novo exame comprovou que a gravidez não iria para frente e o médico a orientou a aguardar que o corpo eliminasse o embrião naturalmente. Foram vinte dias de espera que culminaram em um sangramento acompanhado de muita dor: “Sentia como se estivessem rasgando minha carne. Cheguei a desfalecer enquanto tomava banho.”

Para piorar, tanta espera e sofrimento tinham sido inúteis. A ideia inicial era evitar uma curetagem, espécie de raspagem do útero que tem como finalidade remover o que restou da gravidez. Além de ser invasivo, o procedimento tem risco de causar lesões na parede uterina, o que poderia dificultar uma nova gestação. Para Natália, no entanto, o abortamento natural não foi capaz de fazer a expulsão completa do que restava da gravidez e ela acabou tendo que se submeter à curetagem.

A recuperação física foi tranquila, mas a emocional, não. “Sentia como se o mundo inteiro estivesse andando para frente e só eu estivesse parada. Perguntei para o meu marido se não estava sofrendo também e entendi que, para ele, era como se fosse um plano pausado, que logo retomaríamos”, diz.

Um filho é também uma ideia

A gravidez é mesmo um plano. Mas, em geral, para a mulher que aborta, engravidar de novo não se trata de resgatar o mesmo processo. Aquele filho morreu de fato. E a medida para o sofrimento causado pela perda não tem a ver com o tempo da gestação.

Isso acontece porque a gravidez não é puramente biológica. Mais do que um exame positivo, uma avalanche de enjôos, imagens de ultrassom e um corpo em metamorfose, um filho em gestação é também uma ideia. É uma grande fantasia que nasce não necessariamente junto com o teste positivo. Para algumas, vem bem antes. Para outras, só muito depois.

Em um processo de abortamento, o luto é do bebê sonhado. E, muitas vezes, é mais difícil de ser elaborado do que o luto de um bebê que nasceu

Enquanto o quadril e o ventre se expandem, no plano psíquico, um segundo espaço se abre para abrigar o que a psicanálise chama de “bebê sonhado”. Ele abarca não apenas a criança, mas o papel que se imagina que ela ocupará na vida dos pais.

Essas ideias provavelmente são muito diferentes do que acontecerá de fato, depois do nascimento. Mas são vividas com intensidade real. “Em um processo de abortamento, o luto necessariamente é do bebê sonhado. E, muitas vezes, é mais difícil de ser elaborado do que o luto de um bebê que nasceu”, diz Vera Iaconelli. Isso porque falta materialidade, ou seja: elementos reais – fotos, memórias, objetos – que possam ser compartilhados e que conferem reconhecimento social para aquela dor.

Ao contrário do que se possa imaginar, o bebê sonhado não é exclusividade de uma gravidez desejada. Ele pode existir até mesmo quando a mulher não quer ter aquele filho e decide fazer um aborto eletivo. E, ainda que ela continue firme em sua decisão, a interrupção é capaz de desencadear um luto profundo.

“O que você está sentindo?”

Por outro lado, há mulheres que abortam – espontaneamente ou não – e simplesmente não vivem emocionalmente a experiência da perda. “Só saberemos o que elas estão sentindo se fizermos a pergunta simples, deixando de lado nossas crenças e expectativas: ‘O que você está sentindo?'”, diz a obstetriz e acupunturista Flavia Estevan, do Coletivo Feminista Saúde e Sexualidade.

“Já acompanhei mulheres que encararam a perda de um bebê relativamente bem, mas entraram em luto tempos depois, durante o nascimento de outra criança. O parto traz à tona a relação entre vida e morte, o contato com o desconhecido, o descontrole”, afirma.

Só saberemos o que elas estão sentindo se fizermos a pergunta simples, deixando de lado nossas crenças e expectativas: ‘O que você está sentindo?

Se mostrar disponível para ouvir atentamente e acolher a dor de quem aborta é o primeiro passo para a elaboração do luto. E, assim, o processo, que não tem hora para acabar, pode ficar menos doloroso.

“Aprendemos que, quando as pessoas perguntam como qualquer um de nós está e quando elas realmente ouvem nossas respostas, com o coração e a mente abertos, o peso do sofrimento geralmente fica mais leve – para todos nós. Ao sermos convidados a compartilhar nossa dor, juntos nós damos o primeiro passo em direção à cura”, escreveu Meghan Markle.

Medicina despreparada

O drama é que vivemos em uma sociedade estruturada para abafar as dores em geral. E esta em especial. Mulheres que abortam, quase sempre, são atendidas em maternidades. Fazem exames para confirmar a perda junto com quem está descobrindo o sexo dos seus bebês, a idade gestacional, quanto tempo falta para o parto. Aquelas que precisam de curetagem, se recuperam da anestesia na mesma enfermaria que puérperas, que acabaram de dar à luz. Ficam de cara com aquilo que acabaram de perder.

Ali, em vez de um singelo e sincero “Como você se sente?”, costumam ouvir frases cheias de estatísticas e “incentivos”. Do tipo: “Isso é muito normal. Logo, logo você pode tentar de novo”; “Melhor perder assim, no comecinho, do que mais pra frente”; “Essa gravidez não ia para frente mesmo”; “Melhor assim, vai que nasce com problema”.

A médica de família e comunidade Aline Oliveira, que investiga a relação médico-paciente em sua pesquisa de mestrado na universidade Western Ontario, no Canadá, é crítica da postura comum aos médicos durante os atendimentos em geral. “Não estamos humanamente preparados para lidar com essas dores”, diz.

Ainda assim, durante a entrevista para esta reportagem, ela mesma percebeu que reproduz o padrão com as mulheres que perdem bebês: “Fui ensinada a olhar para o aborto espontâneo como algo muito frequente e a dizer isso para as pacientes, quase como uma maneira de incentivo. Precisamos constantemente rever nossas atitudes e falar sobre temas assim nos ajuda a fazer isso. Agora estou me dando conta de que eu deveria simplesmente perguntar o que elas estão sentindo”.

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