10 — Gama Revista
©Guilherme Falcão/Getty Images

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100 contos que representam diferentes idades da vida. A escritora Olivia Byington apresenta com exclusividade na Gama uma prévia de seu novo livro. A seguir, o texto 10

Olivia Byington 09 de Março de 2021

Desde o último verão ela não fazia outra coisa senão esperar a visita do pai. Suas idas e vindas tinham ficado difíceis com a crise econômica e o que ele ganhava lá fora dava espremido para a pensão e a economia da passagem aérea quando fosse visitar a filha. No outro continente ele tinha encontrado trabalho e ela repetia isso pra si mesma na tentativa de sentir que tudo tinha melhorado depois que ele imigrou. Sua mãe vivia possessa. Tomara que não volte nunca. Me abandonou, quero que morra com a nova família. A menina ouvia a ladainha que destruía o pai, seu grande amor, aquele que entendia o que ela falava, que ouvia e respondia exatamente ao que ela tinha perguntado.

No dia a dia contava com a lourinha de óculos, psicóloga do colégio que tinha se acostumado a ouvir a menina. Não ia a médicos, nem a aulas fora da escola como as outras crianças. Era do colégio pra casa socada na van da motorista mal-humorada. Seu bairro era o último no itinerário da condução e ela chegava pro almoço amarfanhada e sem apetite por conta das balas que devorava no caminho. Por isso era magra demais e estava ficando baixinha e franzina. Mas a mãe ligava pouco pra isso, dia e noite pendurada no telefone celular, metida com advogados e brigas na justiça na luta pra obter mais dinheiro do pai. Pensãozinha de merda, duvido que lá pra família dele seja essa miséria. A situação do país também não ajuda , estamos indo pro precipício.

Era duro entrar no quarto pra estudar e ouvir esses vaticínios aos gritos, ela sempre com aquele aparelho grudado na orelha. A menina lançava mão dos fones e estudava ao som de forró, funk, rock, rap, qualquer coisa que a desconcentrasse menos do que a voz estridente da mãe e sua metralhadora de impropérios. Na hora do jantar quando se encontravam pra comer a comida congelada, a mãe se desculpava arrependida e abraçava a menina que derramava lágrimas que ela não via, preocupada com a sua defesa e seu discurso para desconstruir o pai e clamar pela volta dos militares para derrubar o governo. É de um par de botas que este país precisa. As quentinhas do jantar eram entregues semanalmente e vinham em porções individuais divididas pelas duas depois da embalagem passar pelo microondas. Não posso comer carboidratos de noite, mas você deve se alimentar bem pois está crescendo. E acendia um cigarro ainda na mesa enquanto a menina acabava de jantar, lentamente, garfada a garfada, até a mãe se distrair e ela se desvencilhar da comida insossa na lixeira da cozinha.

A lourinha de óculos ouviu mais uma vez suas queixas. Seu pai não se separou de você mas da sua mãe. Ele volta. Ela perdia aulas sentada naquela salinha e já não seria nem a melhor da turma nem a melhor da escola naquele ano. Não era culpa da música que ouvia enquanto estudava. Também não era pelos gritos da mãe que queria derrubar o governo, moralizar o congresso, prender o presidente e aumentar sua pensão. Era a saudade do pai que doía no seu coração e fazia com que ela não tivesse mais vontade de aprender nada porque não valia a pena. Olhando pela janela que dava pro pátio, viu sua imagem no primeiro dia de aula, quando chegou ali de mãos dadas com ele. Ela não queria largar a sua mão por nada e ele prometeu que ia buscá-la para almoçarem pizza. Acreditando foi brincar com as outras crianças e imaginou a delícia que seria sentar na mesa do restaurante, comer o pãozinho quente do couvert, tomar o suco com a espuma espessa e descrever minuciosamente pro pai o jeito afetado da professora nova, as letras brancas no quadro negro, dizer o nome de cada menina. E como prometido ele estava ali pra busca-la na hora exata. Ele não se atrasava nunca porque era engenheiro e vivia olhando seu relógio de pulso enquanto alisava a barba. Chegar atrasado é feio. Um desrespeito com as outras pessoas. Não deixe comida no prato, tem gente no mundo que passa fome. A boa educação já era cimentada na sua personalidade e tudo o que fazia era para agradar ao pai dentro dela. Dobrava as roupas, escrevia com a letra caprichada, lavava entre os dedos do pé e esfregava atrás dos calcanhares. Aguardava o verão pela visita do pai e pelo natal.

Apesar dos seus dez anos completos sonhava com um Papai Noel arrastando presentes de trenó pela neve branquinha e fofa que ela não conhecia. Não que acreditasse nele mas na ideia mágica de uma fábrica de coisas boas, de brinquedos coloridos pra alegrar todas as crianças da terra. Não existe, claro, mas devia existir. E talvez lá no frio onde o pai morava ainda existisse. Lá onde todos limpavam suas casas e até as privadas ele dizia que lavava, com muito orgulho. Em casa, a mãe mantinha a empregada diarista apesar da falta de dinheiro. Ela não tinha tempo de arrumar a casa nem de lavar a privada, nem queria fazer isso porque era coisa pra uma empregada fazer. Mas também não trabalhava e não cuidava mais de si. Vivia desarrumada e atrapalhada com as contas e as fechaduras. Mexendo no fundo da bolsa não achou o chaveiro e foram dormir mais uma vez na casa da avó, longe dali, atrás da cópia da chave. Na outra vez tinha ido até lá, mas a mãe já tinha perdido a cópia também e as duas tiveram que dormir na cama emprestada do tio que ainda morava lá com a avó, já bem velhinha.

Qual o problema de perder aula um dia? Depois você recupera, já está chegando o fim do ano e você já passou em tudo pelo que eu sei. O fim do ano não estava chegando nem ela tinha passado em nada ainda. Ao contrário, ela já não conseguia mais estudar em casa porque a empregada tinha ido embora e a mãe não ligava para o mau cheiro que vinha da cozinha e dos banheiros. O país está indo pro brejo. A corrupção acabou com a nação e agora nós estamos pagando a conta. A menina descia para a portaria para fazer as lições de casa e se sentava na mesa do zelador que trazia biscoitos e bananas pra ela. Depois ela subia e se deitava no lençol sujo. Já não havia internet e ela não podia falar com o pai, nem saber o dia certo da sua chegada em dezembro. Tira isso da cabeça sua tonta. Vai ver que ele nem vem. Deve estar ocupado lá com a família nova, o filha da puta.

Na aula de geografia desenhou uma casa na neve com um pontinho vermelho lá dentro. Era o seu pai arrumando as malas para vir buscá-la. A crise de choro que veio em seguida foi acolhida pela psicóloga na sua salinha, mas ela não conseguia mais falar. Em silêncio rodava a ponta do tênis encardido no assoalho de tacos de madeira desenhando um oito deitado, ora para um lado ora para o outro. A lourinha ajeitava os óculos que escorregaram do seu nariz mínimo buscando tirar alguma palavra dela. Ofereceu a caixa de lápis de cor e a folha de papel em branco. Mas a menina não quis desenhar como nas tantas outras vezes.

Olhando o laptop bem em cima da mesa não encontrava a coragem pra se jogar sobre ele. Sabia tudo de cor. Número de telefone celular e fixo, código de área, endereço eletrônico, e-mail. Fica à vontade, está ligado no Wifi e o Skype fica na barrinha debaixo, é só clicar duas vezes com o mouse. Esticou seu braço magrinho e com seus dedos delicados foi teclando depressa a chamada. Na sua casa já não havia mais luz, nem água. Nos armários as baratas faziam a festa com restos de comida de meses atrás. A mãe já não falava mais no celular e dormia pra passar o tempo. O pai ouvia e via o rosto da filha na tela do computador. A psicóloga agora segurava a mão da menina e enxugava as lágrimas que desciam pelo seu rosto com o lencinho tirado da caixa de papel. A mãe não respondeu o telefone, não atendeu a campainha do apartamento e a porta foi arrombada pelos bombeiros. Com a mochila da escola nas costas entrou no carro rumo à casa da avó. Ia dividir o quarto com o tio e esperar que o pai viesse buscá-la um dia.

Olivia Byington é escritora, cantora e violonista. Publicou “O Que é Que ele Tem” (Objetiva, 2016). O texto “10” é parte de uma série de contos em que Olivia retrata as diferentes idades da vida — do 0 ao 100. Cinco desses textos serão publicados na Gama durante o mês de março de 2021, como uma prévia desse projeto que em breve ela deve lançar em livro.

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