Quando o videogame e a política se encontram — Gama Revista
Guilherme Falcão / Getty Images

Quando videogame e política se encontram

Cada vez mais, políticos utilizam videogames como plataforma para conversar com um público mais jovem. Da extrema-direita a jovens candidatos de esquerda, todos querem o controle dos gamers

Daniel Vila Nova 05 de Dezembro de 2020

Se no mundo dos videogames o começo da década foi marcado pelo debatejogos eletrônicos são arte?”, estes tempos parecem ser palco para uma nova discussão: podem videogame e política se misturar?

Uma parcela do público gamer ainda se incomoda quando o assunto são jogos e política, por mais que essa mistura ocorra o tempo todo. O caso de “The Last Of Us Parte II” é um exemplo disso. Um dos jogos mais esperados do ano, a continuação foi lançada e encontrou enorme resistência e ódio por parte significativa dos fãs.

O game foi muito criticado por uma parcela do público mais conservadora, que acusou os desenvolvedores de tentar forçar uma mensagem política na obra ao colocar personagens LGBTQI+ em posições de protagonismo.

O mundo da política, entretanto, parece cada vez mais interessada no mundo dos games. Nos EUA, a deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez participou de uma live na Twitch jogando “Among Us”, um dos jogos mais populares do momento. Em apenas algumas horas, AOC quebrou recordes e teve a terceira live mais vista na história da plataforma com 435 mil espectadores.

Já o presidente eleito americano Joe Biden criou um escritório virtual oficial de sua campanha no jogo “Animal Crossing”, além de disponibilizar itens personalizados de sua candidatura dentro do game.

No Brasil, dois candidatos à prefeitura de São Paulo participaram de lives jogando “Among Us”. Na live de Guilherme Boulos (PSOL), estiveram presentes Leandro Demori, editor-executivo do site The Intercept Brasil, o comediante Paulo Vieira e a youtuber Nath Finanças. Já na stream de Arthur do Val (Patriota) marcaram presença o comediante Danilo Gentili, o deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) e o youtuber Monark.

No segundo turno, Boulos repetiu a dose e jogou com o youtuber Felipe Neto, com uma audiência 500 mil pessoas assistindo à partida. Neto também jogou com Manuela d’Ávila (PCdoB), candidata a prefeitura de Porto Alegre.

Apesar do interesse recente por conta das eleições, a aproximação política de candidatos ao público gamer não é exatamente nova

Apesar do interesse recente por conta das eleições, a aproximação política de candidatos ao público gamer não é exatamente nova. Conforme pesquisa realizada por Isabela Kalil, diretora do Núcleo de Etnografia Urbana da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), homens jovens nerds e gamers compõe a maior base de apoio do presidente Jair Bolsonaro.

Se enquanto deputado Bolsonaro enxergava os videogames como violentos e uma possível ameaça à juventude, o tempo — e a possibilidade de se tornar presidente — fez com que ele reavaliasse tal público, passando a acenar às demandas do grupo durante sua campanha presidencial.

O valor dos videogames

No final de outubro, Bolsonaro anunciou a redução de 10% nos impostos de consoles e máquinas de jogos eletrônicos. É a segunda vez que o presidente reduz o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) no setor de games.

A decisão do presidente veio após barulho nas redes sociais, quando a hashtag “#AbaixeImpostoGamer” viralizou depois de Kim Kataguiri protocolar um pedido no Ministério da Economia para a redução de impostos em videogames.

Nas redes sociais, Kataguiri celebrou a redução, atribuindo-a a pressão de sua campanha. Mas no Twitter, Renan Bolsonaro, filho de Jair, chamou o deputado de “mentiroso oportunista” e afirmou que a redução não teve qualquer relação com a proposta do deputado. Segundo Renan, Bolsonaro sempre defendeu medidas de redução do preço de videogames e está apenas mantendo suas promessas.

O alto valor dos novos consoles é fato consolidado no mercado brasileiro. Conforme reportado pela Gama em setembro, videogames sempre foram um produto caro no país.

A redução promovida por Bolsonaro surtiu efeito e afetou imediatamente os preços dos novos Xbox e do PlayStation 5. A edição padrão e a edição digital do PlayStation 5 passam a ser vendidas por R$ 4.699 e R$ 4.199 respectivamente (anteriormente eram R$ 4.999 e R$ 4.499), enquanto o Xbox Series X fica por R$ 4.599 RS e o Series S por R$ 2.799 (antes eram R$ 4.999 e R$ 2.999) .

Gamergate e a nova extrema-direita

O apoio dos gamers a um político de extrema-direita não é exclusividade do Brasil. Nos EUA, o movimento conhecido como Gamergate inspirou uma série de ataques misóginos contra jornalistas e desenvolvedoras de jogos e se tornou uma porta de entrada para a extrema-direita americana.

O que começou como um post de um programador americano detalhando o término do seu relacionamento com uma desenvolvedora de jogos acabou se tornando uma cruzada misógina que perseguia mulheres que trabalhavam na indústria.

Zoe Quinn, a desenvolvedora em questão, havia criado o popular jogo “Depression Quest”. No post do ex-namorado Eron Gjoni, ele a acusou de ter o traído e se relacionado com um jornalista especializado em videogames para garantir boas críticas para o seu jogo.

Nos EUA, o movimento conhecido como Gamergate inspirou uma série de ataques misóginos contra jornalistas e desenvolvedoras de jogos

O texto viralizou em fóruns pela internet, que passaram a discutir a falta de ética no jornalismo especializado em games. Para parte do público, o suposto relacionamento de Quinn com o jornalista Nathan Grayson tornava as críticas positivas da imprensa sobre “Depression Quest” enviesadas e pouco confiáveis.

Ignorando o fato de que o jornalista em questão jamais escreveu qualquer crítica sobre o jogo, a hashtag “#Gamergate” se tornou Trending Topics no Twitter e passou a ser conhecida como o nome do movimento — uma alusão ao escândalo de Watergate.

Para o New York Times, a desenvolvedora Zoe Quinn revelou que sofreu ameaças de estupro e de morte e que chegou a ser perseguida no mundo real. Ela, entretanto, não foi a única. Sob a bandeira de uma suposta luta pela ética do jornalismo de jogos, o movimento continuou a perseguir e atacar mulheres da indústria.

Um dos casos mais famosos foi o da YouTuber Anita Sarkeesian, que foi constantemente ameaçada e teve de cancelar uma palestra em uma universidade americana após ameaças de um ataque terrorista ao local. Anita ficou famosa por sua série “Tropes vs Women in Video Games”, onde ela criticava o papel de personagens femininas nos jogos.

Em entrevista ao Nexo, a professora e produtora de conteúdo em jogos digitais Beatriz Blanco afirmou que “movimentos de extrema direita acabam se aproximando desse grupo por encontrarem um espaço com ressonância para essas ideias de rejeição ao diferente. O resultado é uma parcela de apoiadores bastante apaixonados e muitas vezes hostis à diferença.”

Steve Bannon, ex-estrategista-chefe do governo Trump, creditou o Gamergate como umas das ferramentas utilizadas pela extrema-direita para aproximar jovens dos ideais extremistas. “Você pode ativar esse exército. Eles saem do Gamergate ou de qualquer coisa assim e logo começam a gostar de política e de Trump”, disse em entrevista ao USA Today.

O caso Xbox Brasil

No Brasil, os ataques a mulheres que trabalham com games também são constantes. Isadora Basile, antiga apresentadora do canal do Xbox Brasil no YouTube, foi demitida dois meses depois de sua contratação.

Em suas redes sociais, Isadora relatou que sofreu inúmeros ataques pessoais enquanto era apresentadora da empresa — o assédio virtual chegou ao ponto dela receber ameaças de morte e estupro.

“Devido a todos esses ataques, a Microsoft encontrou como melhor opção me desligar do cargo de apresentadora para que eu não esteja mais exposta a situações como essas que se passaram”, explicou Basile em um post.

Em nota, a empresa afirmou que a demissão faz parte de uma reformulação da estratégia de conteúdo original da marca e em entrevista para o site IGN americano um representante global da Microsoft disse que a decisão não tem qualquer relacionamento com o assédio sofrido por Isadora.

“Nós não toleramos assédio ou comportamento desrespeitoso de qualquer tipo e agimos para amparar Isadora quando os ataques pessoais sofridos por ela chegaram a nossa atenção. As mudanças de programação da última semana não estão relacionadas com isso”, afirmou a marca.

O posicionamento da Microsoft, entretanto, não foi suficiente para parte do público, que relembrou o passado problemático da companhia no combate a ataques e comentários preconceituosos.

Durante anos, o canal independente do YouTube Xbox Mil Grau — que contava com quase 200 mil inscritos — promoveu piadas e comentários machistas, racistas e transfóbicos na internet, além de atacar jornalistas e críticos dos consoles da Microsoft.

Apesar das atitudes preconceituosas, o Xbox Mil Grau tinha uma relação cordial com Microsoft, participando de eventos da empresa e sendo convidados para a E3, a maior feira de videogames do mundo.

“Eles começaram como todo integrante do Gamergate começou: assediando pessoas sob a bandeira de ‘éticas no jornalismo de games’”, comentou um jornalista brasileiro a Vice, que optou por não se identificar por medo das repercussões.

As ações do grupo, entretanto, encontraram um limite após um dos integrantes do Xbox Mil Grau postar em seu Twitter uma piada ironizando os protestos americanos pela morte de George Floyd. Jornalistas, personalidades do mundo dos games e parte do público se organizaram para denunciar as atitudes do grupo.

A hashtag “#YouTubeApoiaRacista” figurou nos Trending Topics e chamou atenção da mídia internacional, que passou a noticiar o caso. A pressão surtiu efeito e o canal foi banido da plataforma e teve sua relação com a marca oficialmente cortada, sendo obrigado a retirar a menção ao “Xbox” do nome do canal.

Apesar do banimento, os integrantes do Xbox Mil Grau continuam atuando na internet sob outro nome. Seis anos depois do Gamergate, os ideais por trás do movimento continuam vivos. Resta saber a recente movimentação política mudará algo ou se a sociedade continuará a ignorar o impacto que os games tem na política.


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