Leia trecho do romance O Amante sobre um affairGama Revista

Trecho de livro

O amante

Clássico romance da francesa Marguerite Duras volta às prateleiras brasileiras no fim de junho, depois de cinco anos sem ser editado no país

05 de Junho de 2020

POR QUE LER?

Escritora, dramaturga e cineasta, Marguerite Duras é uma das autoras francesas mais reconhecidas do mundo. Mas nem sempre foi assim: dona de uma escrita altamente poética e experimental, ela demorou a cair no gosto do grande público — embora fosse celebridade no círculo cult de Lacan, Barthes, Godard e Alain Resnais (é dela, aliás, o roteiro de “Hiroshima, Meu Amor”, 1959), para dizer alguns nomes. Foi apenas com “O Amante” (1984), publicado aos 70 anos e vencedor do Prêmio Goncourt, a principal premiação literária da França, que Duras entrou para as listas de mais vendidos. Talvez porque esse seja um livro “mais legível do que outras obras suas, mas sem deixar de ser profundamente durasiano”, escreve a crítica e pesquisadora Leyla Perrone-Moisés no posfácio que assina nesta nova edição nacional do romance e também na antiga, da finada Cosac Naify. Começar por ele, então, pode ser uma boa opção para quem quer se aventurar pela literatura de Duras. E a hora é boa, já que a reedição pelo selo Tusquets finalmente devolve o título às prateleiras brasileiras depois do encerramento da Cosac em 2015.O lançamento está previsto para o fim deste mês.

“O Amante” é considerado o livro mais autobiográfico da escritora, que baseou quase toda sua obra em experiências da própria vida, principalmente as da infância na Indochina colonizada pela França (atual Vietnã). A narrativa, que foi adaptada para o cinema por Jean-Jacques Annaud, acompanha o relacionamento de uma jovem francesa e um rico comerciante chinês em Saigon, mas está longe de ser uma história de amor feita de dois pombinhos. Além da relação contraditória, as tragédias familiares, que vão da conturbada relação com a mãe aos problemas dos irmãos, também estão ali e fazem parte das memórias evocadas pela velha narradora-protagonista. É com a imagem de seu rosto “devastado, destruído” que a história começa. A leitura prende porque, afinal, queremos saber o que causou essas marcas tão profundas. Ao avançar as páginas, além de descobrirmos, contemplamos as paisagens belamente construídas e os paradoxos existenciais típicos da literatura de Marguerite Duras.


“Sempre desço do ônibus quando estamos na balsa, à noite também, porque sempre tenho medo, medo de que os cabos cedam, de que sejamos arrastados para o mar. Na terrível correnteza vejo o último momento de minha vida. A correnteza é tão forte que arrastaria tudo, até pedras, uma catedral, uma cidade. Há uma tempestade que sopra no interior das águas do rio. Um vento que se debate.

Estou com um vestido de seda natural, gasto, quase transparente. Tinha sido antes de minha mãe; um dia ela deixou de usá-lo porque achava claro demais e me deu. É um vestido sem mangas, muito decotado. Daquele tom amarelado que a seda natural adquire com o uso. Tenho-o na lembrança. Acho que ele me cai bem. Uso um cinto de couro na cintura, talvez de meus irmãos. Não me lembro dos sapatos que usava naquele tempo, só de certos vestidos. Na maior parte do tempo, uso sandálias de lona sem meias. Falo da época anterior ao colégio de Saigon. A partir de então, naturalmente sempre uso sapatos. Naquele dia, eu devia estar com aqueles famosos sapatos de salto alto em lamê dourado. Não vejo que outra coisa poderia usar naquele dia, portanto eu os uso. Saldo de liquidação que minha mãe me comprou. Uso esses sapatos de lamê dourado para ir ao liceu. Vou ao liceu com sapatos de noite enfeitados com pequenos desenhos de strass. É por minha vontade. Só me suporto com esse par de sapatos, e ainda agora é o que quero, são os primeiros sapatos de salto alto da minha vida, lindos, eclipsaram todos os anteriores, aqueles para correr e brincar, baixos, de lona branca.

Não são os sapatos que compõem o que há de insólito, de inaudito, na aparência da menina naquele dia. O que há naquele dia é que a menina está usando um chapéu masculino com a aba reta e lisa, um feltro macio cor de pau-rosa com uma larga fita preta.

A ambiguidade determinante da imagem está nesse chapéu.

Como ele chegou até mim, esqueci. Não imagino quem poderia ter me dado. Acho que foi minha mãe que comprou, a pedido meu. Única certeza: era um saldo de liquidação. Como explicar essa compra? Nessa época, nenhuma mulher, nenhuma moça usava chapéu masculino na colônia. Nenhuma nativa tampouco. O que deve ter acontecido é que experimentei esse chapéu, à toa, de brincadeira, olhei-me no espelho da loja e vi: sob o chapéu masculino, a ingrata magreza da forma, essa imperfeição da infância, se tornou outra coisa. Deixou de ser um dado brutal, fatal, da natureza. Tornou-se, pelo contrário, uma escolha oposta a ela, uma escolha do espírito. De repente eu quis essa magreza. De repente eu me vejo como outra, como outra seria vista, de fora, posta à disposição de todos, à disposição de todos os olhares, na circulação das cidades, dos caminhos, do desejo. Pego o chapéu, não me separo mais dele, eu o tenho, tenho esse chapéu que me faz sentir inteira com ele, não o deixo mais. Quanto aos sapatos, deve ter sido meio parecido, mas depois do chapéu. Eles contradizem o chapéu, tal como o chapéu contradiz o corpo franzino, portanto são bons para mim. Também não os deixo mais, vou a todos os lugares com esses sapatos, esse chapéu, na rua, toda hora, em todo lugar, vou à cidade.

Encontrei uma fotografia de meu filho aos vinte anos. Ele está na Califórnia com suas amigas Erika e Elisabeth Lennard. É tão magro que parece um ugandense branco. Seu sorriso me parece arrogante, tem um ar irônico. Ele quer passar uma imagem desleixada de jovem vagabundo. Gosta disso, pobre, com essa cara de pobre, esse ar desajeitado e magricela. É essa fotografia que mais se aproxima daquela que não foi tirada da moça da balsa.

Quem comprou o chapéu rosa de aba lisa e fita preta larga foi ela, essa mulher de certa fotografia, foi minha mãe. Eu a reconheço melhor ali do que em fotos mais recentes. É o pátio de uma casa no Pequeno Lago de Hanói. Estamos juntos, ela e nós, os filhos. Tenho quatro anos. Minha mãe no centro da imagem. Reconheço como ela se sente pouco à vontade, como não sorri, como espera que logo termine a foto. Por seus traços abatidos, por certo desleixo na roupa, pela sonolência do olhar, sei que faz calor, que ela está cansada e aborrecida. Mas é pelo jeito como nós, os filhos, estamos vestidos, como uns infelizes, que reconheço certo estado que às vezes já acometia minha mãe e cujos sinais de prenúncio nós, na idade que temos na foto, já conhecíamos, esse jeito, justamente, que de repente ela tinha, de não conseguir mais nos lavar nem nos vestir e às vezes nem sequer nos alimentar. Esse grande desânimo de viver atingia minha mãe todos os dias. Às vezes durava, às vezes desaparecia à noite. Tive essa sorte de ter uma mãe desesperada de um desespero tão puro que nem mesmo a felicidade da vida, por mais intensa que fosse, chegava a distraí-la totalmente dele. O que nunca vou saber é que tipo de fato concreto fazia com que ela a cada dia nos largasse à própria sorte. Desta feita, talvez seja a besteira que acaba de fazer, essa casa que acaba de comprar – a da foto –, da qual não tínhamos a menor necessidade, e isso com meu pai já muito doente, à beira da morte, questão só de alguns meses. Ou será que ela acaba de perceber que também está doente, da mesma doença que vai matá-lo? As datas coincidem. O que não sei, como ela tampouco devia saber, é a natureza das evidências que a trespassavam e faziam aparecer esse desânimo. Seria a morte de meu pai, já presente, ou a morte do dia? O questionamento desse casamento? Desse marido? Desses filhos? Ou o questionamento mais geral de toda essa existência?

Acontecia todo dia. Disso tenho certeza. Devia ser brutal. Em certo momento de cada dia vinha esse desespero. E depois a impossibilidade de avançar, ou o sono, ou às vezes nada, ou às vezes, pelo contrário, as compras de casas, as mudanças, ou às vezes também esse humor, apenas esse humor, essa prostração, ou às vezes uma rainha, tudo o que lhe pediam, tudo o que lhe ofereciam, essa casa no Pequeno Lago, sem nenhuma razão, meu pai já agonizante, ou esse chapéu de aba lisa, porque menina tanto queria, ou esses sapatos de lamê, e assim por diante. Ou nada, ou dormir, morrer.”

Produto

  • O Amante
  • Marguerite Duras
  • Tusquets
  • 128 páginas
  • Pré-venda a partir da segunda semana de junho

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