O Segredo do Meu Turbante Nadia Ghulam — Gama Revista

Trecho de livro

O Segredo do Meu Turbante

Comparada a Malala Yousafzai, a ativista afegã Nadia Ghulam conta em livro sua história de sobrevivência à guerra e ao regime fundamentalista do Talibã

23 de Julho de 2020

POR QUE LER?

Quem se emocionou com a história de Malala Yousafzai vai gostar de conhecer a trajetória da afegã Nadia Ghulam — ao lado da ativista paquistanesa, Ghulam se tornou uma das maiores vozes pela defesa dos direitos humanos e das mulheres em regiões dominadas pelo fundamentalismo islâmico. Pudera: tudo começou quando ela tinha oito anos de idade e uma bomba atingiu sua casa em Cabul, capital do Afeganistão. O episódio, parte dos conflitos que levaram o grupo Talibã ao poder na década de 1990, mudou completamente a vida da menina. Sua família, que vivia em ótimas condições, perdeu tudo e ela, a própria identidade. Com parte do rosto queimado e deformado pelo acidente, Ghulam enfrentou vários procedimentos médicos durante dois anos e, quando se recuperou, decidiu se passar pelo irmão morto para poder trabalhar, estudar e sustentar seus pais e irmãs em meio a um regime político e religioso que proíbe as mulheres de fazerem isso.

A história de Nadia Ghulam está em “O Segredo do Meu Turbante”, escrito a quatro mãos com a jornalista catalã Agnès Rotger. Em linguagem direta, a leitura flui quase como se a história nos tivesse sendo contada pela voz da menina, e assim as páginas acompanham mais de uma década de sua vida, desde a tragédia do bombardeio até sua imigração para a Espanha, aos 21 anos, quando ela finalmente pode assumir quem realmente era. Ao mostrar sua passagem por inúmeros hospitais, um campo de refugiados, diversos empregos e a universidade — coisa que ela só conseguiu por fingir ser homem —, o relato contrapõe os horrores da guerra a amenidades infantis da vida antes dos bombardeios; expõe o fardo da sobrevivência no país devastados pelos conflitos ao mesmo tempo em que revela a riqueza da cultura local em fábulas e receitas.

A obra, publicada originalmente em 2010, venceu o Prêmio Prudenci Bertrana, o principal da literatura catalã, e foi traduzida para mais de 25 países, chegando agora ao Brasil pela Globo Livros.


Vi muitos feridos calmos e silenciosos. Talvez se conformassem com o seu destino, ou talvez tivessem se rendido e deixavam que a vida, ou a morte, seguisse seu curso como se eles não tivessem nenhuma influência sobre ela. Esse não era o meu caso. Eu estava com raiva, meu corpo tinha se tornado meu inimigo e minha mente fervia de indignação. Não podia suportar aquela dor imensa e interminável, mas talvez carregasse da pior maneira a raiva que me consumia e que eu concentrava em uma pergunta que nunca me abandonaria: “Por que logo comigo?”. Da noite para o dia, deixei de pensar no futuro com esperança.

Minha mãe me contava histórias e cantava músicas para me distrair e me acalmar, porque o meu desespero cortava o coração dela.

— Venha, querida, não quer escutar a história da raposa e do lobo? — insistia.

Muitas vezes funcionava: eu deixava de soluçar imediatamente e, pouco a pouco, me sentia transportada para aquele mundo no qual os bons sempre vencem. Eu adorava todas as histórias, mas principalmente as que eram sobre animais, aqueles lobos tão bobos e aquelas raposas trapaceiras e sempre prontas para provocá-los. Minha mãe secava minhas lágrimas e aproveitava para me acariciar enquanto começava:

— Era uma vez uma raposa que não encontrava nada para caçar.Estava morta de fome, e quanto mais fome sentia, mais se irritava. Caminhando e caminhando, entrou num pomar muito grande e viu que estava cheio de árvores frutíferas. Havia maçãs, romãs, ameixas…

Eu imaginava com os olhos extasiados e sentia uma doçura na boca.

— … Pêssegos, damascos, cerejas… Havia de tudo. Estava tão enraivecida de fome que começou a bater nos troncos das árvores com as patas.

“Bata com força nas árvores, vamos!”, eu pensava ansiosa, me identificando completamente com a protagonista.

— Tomou impulso e… pronto. Quando, depois de algum tempo, o camponês chegou, viu que alguém tinha deixado cair todas as frutas e que elas estavam apodrecendo no chão. “Quem pode ter feito isso?”, perguntava a si mesmo.

Minha mãe fazia uma voz de homem zangado e me fazia rir, “ai!”. E assim a história continuava e íamos conhecendo as artimanhas da raposa, que mais tarde enganava, como era de hábito, um lobo que também rondava por ali. Já conhecia o fio da história, mas minha mãe todos os dias bordava com ele novos detalhes que me mantinham atenta e cheia de emoção. Ela sabia fazê-lo porque era uma grande narradora (frequentemente notávamos que se fazia silêncio na sala e nos dávamos conta de que todos os doentes e familiares tinham se juntado para ouvir), e também porque temia o momento de “acabou-se o que era doce”. Eu sempre chorava quando uma história terminava, e minha mãe tinha se tornado especialista em aumentar, variar, interligar histórias, porque assim matávamos o tempo e, com um pouco de sorte, eu dormia enquanto ela contava, o que lhe permitia guardar o final para depois.

Minha mãe tinha aprendido a arte de contar histórias desde pequena, quando ficou órfã e teve que ir morar com a irmã mais velha e sua grande família. Ela trabalhava como uma mula na casa: na cozinha, limpando e cuidando dos seus sobrinhos, mas tinha o privilégio de escutar contos, poesias e canções que a sogra de sua irmã contava para as crianças. Naquela época, em que não havia televisão nas casas e a maioria das pessoas não sabia ler, era um hábito que as avós dedicassem muito tempo a contar histórias e a recitar poesias que as crianças aprendiam de cor, como eu também fiz no hospital.

Nem todas as histórias eram inocentes como a da raposa e do lobo. Muitas delas eram patrióticas, inventadas por pessoas que tiveram que fugir do país e sentiam saudades; e também eram comuns as que falavam de amores infelizes. Umas tragédias horríveis nas quais os apaixonados falavam em verso, e que nos levavam a nos debulhar em lágrimas. Todo mundo gostava: sabíamos trechos de memória, cantávamos todas as canções e seguíamos as aventuras como se fosse um filme no cinema.

Minha mãe era uma contadora de histórias excepcional, só que, mais cedo ou mais tarde, se eu não dormisse, os contos e as forças se acabavam, e eu saía da pele da raposa esperta e voltava a ser uma menina prostrada em uma cama.

— Quero brincar, mamãe! Quero uma boneca! — dizia com raiva de vez em quando.

Poucos meses antes, eu ainda tinha a Boneca Dançarina. Meu pai a havia feito para mim. Era de madeira, daquelas que levantam os braços e as pernas quando puxamos a corda para baixo. E, mesmo um pouco antes, quando a vida era normal e dormíamos sempre na mesma cama, temendo só os fantasmas e os monstros inexistentes, em vez de bombas e metralhadoras reais, havia muito mais coisas. Os amigos do meu pai que viajavam para a Rússia — era o auge do prestígio — sempre voltavam com presentes para Zelmai e para mim. Lembro especialmente uma vez em que trouxeram uma kalashnikov* de mentira para o meu irmão e, para mim, uma boneca bem grande que fechava os olhos quando deitava. Parecia mágica, eu não parava de deitá-la e levantá-la, deitá-la e levantá-la… E Zelmai a matava diversas vezes com sua arma nova.

A abundância ia terminando pouco a pouco, à medida que a violência crescia ao nosso redor. A escola, o trabalho, as lojas, as partidas nas sextas, os brinquedos… Fomos perdendo tudo. Quando escutávamos o estrondo das bombas e os disparos de perto e tínhamos que fugir depressa de casa até que a situação se acalmasse, minha mãe tentava pegar alguns lençóis e um pouco de comida, e meu pai se preocupava e dizia para ela se apressar porque não tínhamos tempo a perder. Eu, enquanto isso, só pensava em uma coisa: em buscar a Boneca Dançarina.

Mas a Boneca Dançarina também foi perdida.

*Rifle de assalto ak- 47 criado pelo engenheiro militar Mikhail Kalashnikov e até hoje considerada a arma mais versátil do mundo. (N. T.)

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