Trecho de Livro Talvez Ela Não Precise de Mim — Gama Revista

Trecho de livro

Talvez ela não precise de mim

Em sua estreia literária, a jornalista carioca Anna Virginia Balloussier descreve a rotina com a filha recém-nascida em meio à pandemia de Covid-19

04 de Julho de 2020

POR QUE LER?

Já há algum tempo conteúdos em diversos formatos sobre “maternidade real” se espalham pela internet, tentando desconstruir a visão romantizada da chegada de um recém-nascido. Afinal, apesar do quase nada dito há até bem pouco tempo, o puerpério nunca foi fácil: para a mãe, os primeiros dias de vida de uma criança são um período de privação do sono, mudança nos relacionamentos e no próprio corpo, amamentação, descobertas sobre si mesma e sobre o pequeno ser humano que depende dela 24 horas por dia. Se tudo isso já era complexo em situações normais, o que dizer de um puerpério pandêmico? É essa realidade que a jornalista carioca Anna Virginia Balloussier explora em sua estreia literária.

“Talvez Ela Não Precise de Mim”, que faz parte de uma nova coleção de ebooks da editora Todavia sobre os tempos da Covid-19, é literalmente um diário de quarentena. Durante 40 dias entre março e abril de 2020, a autora registrou a rotina ao lado de Victor, seu companheiro, e Violeta, filha do casal, que nasceu poucos dias antes de a pandemia chegar com tudo ao Brasil e os três se descobrirem isolados num apartamento em Copacabana. O relato é honestíssimo ao descrever os perrengues e as pequenas felicidades de uma mãe de primeira viagem – e o fator coronavírus traz novos ingredientes a esse discurso: álcool em gel e uma dose extra de neuras fazem companhia a passagens bem humoradas, numa espécie de tragicomédia da vida cotidiana desse novo momento do mundo.


23 de março de 2020

Fui dormir só de calcinha e acordei de madrugada com muito frio, um frio surreal. Me enfiei em dois casacos, uma calça e uma meia. Ainda assim, mesmo com lençol e cobertor, eu tremia. De manhã, Victor viu meu estado e pegou o termômetro. Trinta e oito graus. Medimos minha temperatura algumas vezes mais, e cheguei a quase trinta e nove. A febre é o arroz de festa das doenças, aparece em quantas puder. Hoje, contudo, está todo mundo agindo como se só existisse a Covid-19. Como no áudio, provavelmente fake, da senhora aliviada ao receber a notícia de que o marido morrera de tuberculose. Achou que era Covid.

Telefonei para minha obstetra. Julia me orientou a ir monitorando a febre ao longo do dia. Deveria ir ao hospital apenas se persistisse, e também se tivesse dificuldade para respirar, dor de garganta, perda de paladar e olfato, enfim, se eu completasse uma cartela no bingo do coronavírus. Ela pediu que eu usasse máscara para amamentar e evitasse encostar na Violeta até ter certeza do que tinha de errado comigo. Chorei assim que desliguei.

Às vezes a gente se sente na obrigação de justificar por que quer ter filhos ou por que não os quer, e no primeiro caso, que é o meu, um clichê é dizer: Não quero morrer sozinha. Um casamento pode acabar em divórcio, aliás, cada vez mais é assim que é. Mesmo se um casal continua junto, suas partes nunca serão felizes para sempre porque, eventualmente, um dos dois morre, e o outro segue vivo por alguns ou muitos anos. Filhos são a melhor garantia para escapar a uma morte solitária. Exceto em tragédias, e um pai enterrar seu filho é sempre uma, a ordem natural é que eles sobrevivam a nós e zelem por nossa velhice, em gratidão à longa temporada em que limpamos suas barras e bundas.

Só hoje consegui ouvir um podcast do New York Times do qual muita gente falou no Twitter, um episódio já da semana passada. Me deixou pra baixo o dia todo. É uma entrevista com um médico da Itália, onde a epidemia está mais grave atualmente. Ele conta que os pacientes em seu hospital estão morrendo sós. Tentamos ligar, todos os dias, para seus parentes. Mas preciso dizer que às vezes, no meio da confusão, ninguém lembra de telefonar. Então acontece de o filho ligar para o hospital, e a pessoa já estar morta, ele afirma. A escalada do drama italiano, segundo o doutor, começou no dia 23 de fevereiro, o domingo de Carnaval. Para mim, é difícil pensar em como era a vida antes disso. Ninguém pode estar preparado para algo assim, é impossível.

Eu tinha sete anos quando Tom Jobim morreu, recordo bem da data porque as circunstâncias me marcaram. Ele morreu dormindo, nem sentiu, algum adulto me disse depois de assistirmos à notícia no Jornal Nacional. Por muito tempo desejei isso para mim, que, quando minha hora chegasse, eu fechasse os olhos e nunca mais os abrisse. Anos depois descobri que na verdade Tom teve duas paradas cardíacas, sendo que na primeira foi reavivado por médicos. Provavelmente quem mentiu para mim achou que estava me protegendo, mas saiu pela culatra, porque não criei anticorpos para o medo da morte.

Os portais estão dando que já são vinte e três diagnosticados com Covid-19 no séquito que acompanhou o presidente numa viagem para os Estados Unidos, e isso inclui o secretário de Comunicação, que aparece numa foto com Donald Trump usando o boné Make Brazil great again, a versão vira- -lata do slogan do americano. A hipótese de que o presidente dos Estados Unidos tenha sido contaminado pela patacoada brasileira e venha a morrer, porque nem os ricos e poderosos são à prova do vírus, é de um realismo fantástico que não se vê mais nos livros.

À noite peguei o termômetro, trinta e seis ponto dois. Nenhum sinal de Covid nem de qualquer outra moléstia, aparentemente foi só uma ziquizira do corpo. Posso dormir em paz, se não acordar amanhã, vai ser só má sorte mesmo. Se serve de consolo, sozinha não vou estar.

Produto

  • Talvez Ela Não Precise de Mim
  • Anna Virginia
  • Editora Todavia
  • 80 páginas

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