Tuca Vieira: uma entrevista com o fotógrafo das cidades — Gama Revista
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Um corpo a vagar pelas esquinas

Fotógrafo e estudioso das cidades, Tuca Vieira lança dois livros sobre suas diferentes experiências com a paisagem urbana 

Mariana Payno 20 de Janeiro de 2021
Tuca Vieira

Você provavelmente já topou com esta imagem por aí: vistos de cima os barracos da favela de Paraisópolis disputam espaço com quadras de tênis e piscinas privativas de um prédio de luxo do Morumbi, em São Paulo. A foto foi tirada de um helicóptero por Tuca Vieira em 2004 para um caderno especial dos 450 anos da cidade no jornal Folha de S. Paulo, mas ganhou vida própria: rodou o país e o mundo como símbolo da desigualdade social e econômica, foi parar no renomado museu Tate Modern, em Londres, e até em ímãs de geladeira vendidos por camelôs na metrópole paulistana.

Quase duas décadas depois, o fotógrafo de 46 anos não se incomoda que seu trabalho seja frequentemente associado à icônica imagem — ao contrário, diz se orgulhar bastante dela. Mas, na verdade, a relação de Tuca com a paisagem urbana já existia muito antes da foto de Paraisópolis e continuou a existir depois dela. “Eu nasci em São Paulo e me entendo como um cidadão que mora no centro de uma cidade gigantesca, mas nunca naturalizei isso. Para mim, sempre foi motivo de surpresa, algo extraordinário”, conta ele a Gama.

A foto tirada de um helicóptero em 2004 rodou o país e o mundo como símbolo da desigualdade social e econômica e foi parar no museu Tate Modern, em Londres

Esse espanto e o “exercício de estar dentro da cidade e tentar entendê-la como objeto de fora” é o que norteia seu premiado trabalho como fotógrafo há 30 anos e suas pesquisas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde fez mestrado e desenvolve agora o doutorado. As duas facetas, artística e acadêmica, do olhar de Tuca sobre as cidades acabam de sair em livro: “Salto no Escuro”, lançado nesta semana pela editora N-1, reúne ensaios sobre as novas configurações do espaço urbano; e “Atlas Fotográfico da Cidade de São Paulo” (Museu da Cidade, 2020) é uma coletânea de imagens da capital paulista inspiradas no seu guia de ruas (algumas das quais ilustram este texto).

Depois de décadas de “descoberta profunda da cidade” como fotojornalista, os títulos nasceram curiosamente em um período longe do burburinho das ruas e avenidas. Foi entre as saídas cuidadosas para registrar as esquinas vazias de uma São Paulo pandêmica que Tuca organizou as publicações sobre a vida urbana, contemporânea mas de outrora — não sem refletir sobre esse paradoxo. “A pandemia atinge a cidade na sua própria razão de ser, a aglomeração humana, e coloca em xeque sua existência. O espaço urbano é o lugar onde não se deve estar”, diz.

Jardim Alzira Franco, em Santo André
Jardim Raposo Tavares, em São Paulo

Um livro sem imagens e as imagens em um livro

Antes, porém, ele esteve lá. Se com as câmeras criou imagens, foi com quarenta anos de leituras, experiências, viagens e referências artísticas, filosóficas, históricas e arquitetônicas que Tuca, formado em Letras pela USP em 1998, desenvolveu uma série de questionamentos sobre a nossa forma de ocupar e viver as cidades. São essas reflexões que traz em um livro sem nenhuma foto.

Fruto de sua pesquisa na FAU-USP, o “Salto no Escuro” de Tuca joga luz sobre as novas formas de interação com a cidade na contemporaneidade mediada pela tecnologia — uma virtualidade e um excesso de estímulos visuais que, não dá para deixar de dizer, foram potencializados pela pandemia. “Sem fotos, o livro tem essa provocação: é um convite à imaginação”, observa. “É a contradição de um fotógrafo, produtor de imagens, que critica o excesso de imagens.”

Sem fotos, o livro tem essa provocação: é um convite à imaginação. É a contradição de um fotógrafo, produtor de imagens, que critica o excesso de imagens

Como pesquisador, ele tem investigado a relação entre arquitetura e viagem no século 21. “A necessidade do deslocamento do corpo para apreendermos o lugar, a arquitetura da cidade, algo que não é óbvio no mundo virtual em que a gente vive”, explica. Seu trabalho na academia é, no fundo, “uma apologia da experiência corporal” — afinal, enquanto a universidade lhe trouxe recursos para “entender o mundo”, o objetivo de Tuca é fazer o contrário. “Minha contribuição é levar a experiência da rua, do mundo real, concreto.”

Um mundo por onde ele, como fotógrafo, gosta de perambular. “Para eu falar da cidade, eu preciso conhecer, ver com meus próprios olhos”, defende. “O ato fotográfico é isso: botei o pé em cada um desses lugares.” E, no caso de Tuca Vieira, não foram poucos endereços: a começar por uma extensa vizinhança, os quatro cantos da maior metrópole da América Latina, onde ele nasceu.

Tuca Vieira com a câmera analógica que utilizou para clicar o “Atlas” em São Paulo

De 2014 a 2016, foram cerca de três mil quilômetros rodados dentro de São Paulo para clicar uma foto para cada página dupla do seu guia de ruas, dividido em 203 partes. O resultado, batizado de “Altas Fotográfico da Cidade de São Paulo”, virou exposição no Museu da Imagem em 2016 e, no final de 2020, ganhou forma livro — destino que já parecia estar traçado. “Um atlas é, de fato, um livro de mapas. É o suporte perfeito para esse trabalho que nasce de um livro e volta a ser um livro. O ciclo se fecha”, avalia o fotógrafo.

A apreensão total da cidade, porém, ele considera impossível. “O trabalho parte de uma palavra-chave que é pertencimento: São Paulo é a minha cidade; no entanto, eu não a conheço. E se o Atlas me fez realmente conhecê-la mais? É claro que não, ela continua sendo desconhecida. O projeto coloca justamente esse problema: será que é possível conhecer uma cidade? O que é conhecer?”, pondera.

Pirituba, em São Paulo
Heliópolis, em São Paulo

O corpo presente

Sem resposta definitiva para a questão — seja no caso de São Paulo ou de outras metrópoles desordenadas —, Tuca segue empenhado na tarefa de capturar o jogo entre efemeridades e permanências da vida urbana. E só sabe fazer isso estando dentro dela: como uma espécie de flâneur do novo milênio, ele precisa tocar o frenesi das cidades, esbarrar nas multidões, dobrar as esquinas, investigar os becos e descobrir o que há por trás dos muros. Nem sempre é fácil, mas os perrengues, diz, “têm a ver com a vontade de colocar o corpo presente”.

Em 2020, um ano de ausências, ele deu uma pausa no seu mais recente projeto, o de fotografar 30 hipercidades pelo mundo, todas com mais de dez milhões de habitantes. “Pode ser entendido como uma explosão do Atlas em uma escala completamente global”, define. Antes da pandemia, Tuca passou semanas na Ásia clicando 17 enormes centros urbanos, sete deles na China. “Queria levar meu próprio corpo para esses lugares, e conhecer grandes cidades chinesas mudou completamente minha percepção sobre tudo”, conta. “As coisas que estão acontecendo lá estão mudando o rumo da história.”

Ainda sem previsão de quando voltará à empreitada, Tuca também não sabe os caminhos que o trabalho vai tomar em um mundo transformado pela pandemia e diz não ter certeza se suas imagens serão capazes de contar quais são realmente os rumos dessa nova história — mas suas outras obras depõem contra essa falsa modéstia. A fotografia, afinal, é para ele o instrumento narrativo de um tempo e de um lugar. “É meu caderno de notas. Como um escritor que vai à rua com o bloquinho, eu vou com a câmera.”

Brasilândia, em São Paulo

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