Um inventário ilustrado de angústias do millennial — Gama Revista

Um inventário ilustrado de angústias do millennial

‘Parece que Piorou’, primeiro livro da jornalista e cartunista Bruna Maia, mostra como jovens adultos têm vivido – e sofrido – nestes tempos

Laura Capelhuchnik 17 de Setembro de 2020

Diante da concorrência desleal da indústria farmacêutica, hoje fica difícil dizer que rir é o melhor remédio. Mas segue como uma maneira sublime de administrar dores e paranóias duras demais para que sejam encaradas a seco. “Depois que as crises de ansiedade passam, você começa a pensar nelas e percebe que os pensamentos obsessivos são meio ridículos. Meio humorísticos”, diz Bruna Maia, autora do perfil de cartuns @estarmorta no Instagram e no Twitter e que acaba de lançar o livro “Parece que Piorou” (Quadrinhos na Cia, 176 págs., R$ 69,90)

O desenho veio para ela como uma sugestão da psicanalista, um jeito de descarregar angústias, quando Bruna, então jornalista especializada em economia, passava por uma crise de depressão. Dos rascunhos sobre saúde mental nasceu o personagem Paniquinho, uma crise de ansiedade materializada, tão malvada como fiel, sempre presente e com algum conselho na ponta da língua.

“Quando eu fico ansiosa e começo a ter pensamentos obsessivos em looping, parece muito que tem alguém dentro da minha cabeça falando um monte de bobagem”, diz Bruna. “Se o personagem parece um pouco afetivo ou um pouco íntimo é porque ele fica dentro de você, te conhece muito bem. Talvez seja a coisa que mais te conhece bem: sua crise de pânico.”

A acidez dos desenhos e a imediata identificação que os dilemas cotidianos retratados geraram nos seus leitores, especialmente millennials, transformaram o hobby em um compromisso profissional, embora “cartum no Brasil não pague conta”, como ela lembra. Hoje, a página já acumula mais de 80 mil seguidores.

O título de seu primeiro livro também diz muito sobre uma geração que chegou à vida adulta afogando as mágoas na internet: é emprestado do vídeo “Tava ruim, tava bom, mas parece que piorou“, um viral de 2013, mas que ainda hoje é muito utilizado para descrever o sentimento de estar vivo no Brasil em 2020.

“Parece que Piorou” é dividido em seis temas, as grandes retrancas da vida e suas angústias, sobretudo de mulheres: fala sobre transtornos mentais e medicamentos; a preocupação com corpo e aparência; dilemas nos relacionamentos amorosos; tipos de amizade; as transformações do mundo profissional e o papel da astrologia e de outros oráculos aos quais jovens recorrem quando a vida foge do controle — ou quando querem justificar algum desvio de personalidade.

As caricaturas de Bruna costumam ter um recorte social bastante específico: jovens brancos, com profissões pouco convencionais e um discurso esclarecido, moradores de bairros nobres de São Paulo e do Rio de Janeiro, e que podem ser encontrados circulando por “espaços urbanos em rápido processo de gentrificação”. A gaúcha radicada em São Paulo diz que cria a partir de um exercício de observação: “Eu moro no bairro de Pinheiros. É só dar uma volta na quadra, já me inspira muito. Também sigo alguns perfis na internet, tanto os que tiram onda com certos comportamentos quanto de pessoas que de fato os adotam. Mas aí é deselegante citar nomes”, diz Bruna, que também tem como referência os trabalhos da cartunista americana Julie Houts, da alemã Julia Bernhard e dos humoristas britânicos do Monty Python.

Para a artista, além de um descarregamento, o humor é didático. Uma maneira de expor privilégios de modo que todos entendam. “A gente está num momento histórico e artístico de discutir privilégios brancos, masculinos. É um bom momento para fazer humor com base nos estereótipos da classe média ilustrada.” Com base nesse didatismo, Gama separou alguns dos ensinamentos que “Parece que Piorou” traz com suas caricaturas.

A alegria às vezes é só um fardo

Vivemos uma epidemia de ansiedade no Brasil, que tende a se agravar com os efeitos do pandemia do novo coronavírus. Seriam os millennials a geração com a saúde mental mais comprometida da história das gerações?

“Não sei te dizer, porque minha mãe e minha avó não eram muito boas da cabeça. Na verdade acho que a experiência humana nunca esteve muito boa, existir é meio complicado.” Para Bruna, a particularidade está na facilidade que hoje temos de verbalizar o sofrimento psíquico, ao mesmo tempo em que pesa sobre os jovens adultos certa pressão pela felicidade, ou pelo menos para cultivar o avatar motivacional, e ter o coração cheio de amor próprio. “Acho que a gente cresceu achando que ia dar tudo certo, que ia fazer o que gosta, acreditando no amor. Tem uma cobrança para ser good vibes, para ser alegre, ao mesmo tempo em que a gente percebe que não está rolando”, diz.

A angústia surge, então, desse abismo entre expectativa e realidade, e do imperativo de performar satisfação o tempo todo, mesmo na dor, segundo seu diagnóstico. “Mas eu mesma sou o contrário, acho que tá tudo ruim o tempo inteiro.”

Nem mesmo a nova geração supera as velhas práticas

Desde sua primeira publicação, o zine “Manual da Esposa Pós-Moderna”, Bruna traça paralelos nos quadrinhos entre o fardo das mulheres do século 20 e o que carregam as mulheres hoje. Muitas décadas e passos à frente, ainda não superamos certas questões. Por exemplo, atribuir à mulher toda a responsabilidade do cuidado — de si mesma, do marido e até das tarefas pessoais do chefe — e não dar nada em troca.

Um fardo cuja romantização Bruna desconstrói em todas as esferas do livro, especialmente quando fala de homens bem informados sobre o feminismo, mas tão autocentrados que são incapazes de colocá-lo em prática. “Ainda há uma pressão muito grande para a gente ser mamãe de homem. E muitos homens que se acham super desconstruídos na verdade só querem o quê? Uma mãe para cuidar deles.”

Autocuidado, obsessão ou marqueteiras de plantão?

Se você tem instagram e nunca se sentiu livre para revelar que tem imenso prazer ingerindo fritura ou que de vez em quando comete excessos autodestrutivos, @estarmorta é o seu lugar. No livro há críticas sobre privilégios estruturais e problemas sociais mais amplos, mas há também espaço para a troça com as coisas pequenas, como a obsessão por skincare e a enxurrada de hábitos saudáveis e dietas balanceadas no feed que constrangem quem não segue os ditames fitness.

Também não são perdoados os perfis de sarados que dizem malhar somente em nome da saúde e não se importar com padrões, os abastados que fazem apologia ao desapego material, o autocuidado como pressão para esbanjar a pele boa e se aceitar quando já se é lindo. “Quando você vê, estão usando autoestima para vender creme para acne”, comenta Bruna sobre o que ela chama de marketing do autocuidado.

Trabalhe com o que gosta e…

A artista também trata de desglamourizar as embalagens carismáticas do mercado de trabalho: as supostas vantagens do home office; a doação ilimitada a uma empresa com base no amor à causa (embora alguém esteja enriquecerendo com isso); os lugares que pregam diversidade mas não escolhem mulheres e negros como seus líderes.

Os millennials já se encarregaram de atualizar a máxima atribuída a Confúcio: “Escolhe um trabalho de que gostes e não terás de trabalhar nem um dia na tua vida”. Segundo a sabedoria milenar do Twitter, tentar ganhar dinheiro fazendo o que ama significa não amar mais nada.

Agora que o quadrinho deixou de ser um hobby, deu ansiedade com relação à expectativa do público, da crítica, ou algum desprazer em desenhar? “Por enquanto eu estou desencanada de tudo isso. Mas, se eu me conheço bem, talvez daqui a um ano eu comece a ter esse problema”.

Produto

  • Parece que Piorou
  • Bruna Maia
  • Quadrinhos na Cia.
  • 176 páginas

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