Ailton Krenak conversa com a Gama: "Nós não temos limites" — Gama Revista
Chegamos no limite?
Icone para abrir
©Fabrizio Lenci

1

Conversas

"Nós não temos limites"

Uma das maiores lideranças indígenas do país, Ailton Krenak rebate o ministro Ricardo Salles, explica o que é a sua “desrotina” e avisa que não há limites entre nós e a natureza

Luara Calvi Anic 24 de Maio de 2020
© Fabrizio Lenci

“Nós não temos limites”

Uma das maiores lideranças indígenas do país, Ailton Krenak rebate o ministro Ricardo Salles, explica o que é a sua “desrotina” e avisa que não há limites entre nós e a natureza

Luara Calvi Anic 24 de Maio de 2020

Para ilustrar a conexão de seu povo com a natureza, Ailton Krenak lembra da infância e do significado do nome de sua etnia. “kren é cabeça, nak é terra. Krenak é cabeça de terra. É maravilhoso alguém nascer dentro de um mundo tão em confusão e poder passar a primeira infância com esse sentimento de pertencimento à terra, onde a mãe terra não é uma metáfora, mas uma experiência vivida”, diz a Gama, por telefone, direto da reserva onde vive atualmente — uma região de 4 mil hectares onde estão cerca de 600 pessoas, em Minas Gerais.

Ailton segue com sua causa desde o final dos anos 1970, quando começou a participar de organizações pelos direitos dos indíos. Ele ganhou mais notoriedade em 1987 quando, vestindo terno branco, manifestou seu descontentamento pintando o rosto com a tinta escura do jenipapo durante uma reunião da Assembléia Nacional Constituinte. Em 1988, fundou a União das Nações Indígenas e, nesse mesmo ano, era promulgada a Constituição de 1988 — que passou a garantir aos índios, por lei, o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos sobre as terras que ocupam.

Esses direitos, no entanto, vem sendo ameaçados mais e mais. Seja pelo desmatamento que só cresce no país, seja pela ameaça que representa o governo do presidente Jair Bolsonaro aos índios. É por isso que, aos 67 anos, o líder indígena, ambientalista e doutor honoris causa pela Universidade de Juiz de Fora se mantém atuante.

Recentemente, lançou “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” (2019) e “O Amanhã não está à Venda” (2020), ambos pela Companhia das Letras. Antes do isolamento, ele preparava um trabalho para a 34ª Bienal de São Paulo dirigido à educação ambiental das crianças.

Direto de sua casa às margens do Rio Doce, ele fala a Gama por telefone. A entrevista foi combinada por mensagens de Whatsapp. Nelas, em vez de ponto final, Ailton prefere usar o emoji de uma plantinha verde.

  • G |O Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, afirmou na reunião ministerial do dia 22 de abril que é hora de “ir passando a boiada, ir mudando todo o regramento, ir simplificando normas de Iphan, de Ministério da Agricultura, de Ministério de Meio Ambiente”. O que você tem a dizer sobre essa fala?

    Ailton Krenak |

    Foi uma reunião de governo num momento gravíssimo, onde o assunto da pandemia só vem ao caso como uma oportunidade de assaltar o país. O que o Salles fala é isso: vamos aproveitar que está todo mundo preocupado com a pandemia e vamos assaltar o país. É uma imagem terrível. Os ministros que não falaram nada também aderiram a essa convocatória. O pico do horror é o próprio Presidente da República incitar a população a se armar. Foi um buraco escuro essa assembleia de doidos. A gente está vendo que o estado está dominado e que a sociedade precisa ficar alerta. Todos estamos ameaçados. Aquilo que as pessoas acreditam que são valores humanos, que mantém a gente mais ou menos vivos, foi devastado com essas falas das autoridades. Agora nós precisamos manter a atenção, o cuidado e a coragem. Porque se antes a gente sabia que tinha múltiplas crises se somando à pandemia, agora nós temos um fato real que é uma ameaça sobre os direitos gerais: o direito ambiental, os direitos humanos, o direito de tudo. É um governo declarando que vai desrespeitar qualquer contrato.

  • G |O tema da Semana na Gama é limite. Há um limite, um distanciamento que colocamos em relação à natureza? Qual o resultado dessa desconexão?

    AK |

    Parece que nós estamos vivendo uma ruptura da nossa quase história comum com a natureza. Nos mitos ancestrais, os povos têm narrativas sobre eventos em que os humanos e todos os outros seres tinham a mesma circulação, o mesmo fluxo dentro da vida, uma experiência cosmogônica. Essa experiência não supõe um limite, uma fronteira indicando que dali para frente está interditado. No entanto, nas nossas histórias antigas, as quebras de limites, as rupturas, sempre causaram a destruição de um mundo. Estou falando de centenas de povos da América Latina que não existem mais.

  • G |Já tivemos um mundo mais compartilhado, com menos limites entre o homem e a natureza?

    AK |

    Quase que nós chegamos a vislumbrar uma humanidade compartilhando um mesmo mito de mundo quando, em 1987, foi publicado o estudo “Nosso Futuro Comum”, já observando as mudanças do clima no planeta. Há quarenta anos, já era um alerta vermelho para o tipo de viagem sem retorno que nós estávamos embarcando. Esse homo sapiens alucinado que decidiu pirar a cabeça e devorar, colonizar outros seres agindo de uma maneira tão desastrosa, está destruindo a base da vida de outros seres dentro dessa biosfera do planeta. Agora nós estamos tendo uma espécie de devolução da nossa incessante atividade. E é esse vírus, ele é do tamanho da nossa confusão.

  • G |Ainda que algumas pessoas façam movimentos para consumir menos e ter uma posição mais ética diante disso tudo, o planeta continua sendo destruído em ritmo frenético. Você é esperançoso em relação ao futuro da humanidade?

    AK |

    Nós não temos limite. Se há o desejo de existir de maneira que não dane os outros ao redor, se isso é um desejo para muita gente no mundo, ele é insuficiente para criar uma governança global. A lógica da governança global é antropocêntrica, ela não leva em conta os outros seres que estão interagindo com a gente e que podem, em algum momento, decidir nos excluir – que eu acho uma esperança muito bem-vinda. Porque se é uma biosfera, passarinhos estão cantando, as plantas, todos os outros seres estão aí, celebrando o dia. Nós somos os únicos caras que estão nesse desespero que passa pela experiência existencial, mas também por outros desejos de consumir o planeta. Você não precisa mais daquilo, mas quer mais e mais.

  • G |Enquanto eu converso com você é possível ouvir passarinhos mas também um apito. O que é isso?

    AK |

    É o trem da Vale [mineradora]. Esse trem da Vale sempre me faz lembrar dos poemas do Drummond. O Carlos Drummond de Andrade tem do começo ao fim da obra dele essa buzina oculta de alguma maneira.

  • G |O José Miguel Wisnik lançou justamente um livro sobre isso, “Maquinação do Mundo: Drummond e a Mineração”.

    AK |

    É maravilhoso. E o livro é mais ainda cortante porque o José Miguel consegue mostrar para a gente coisas que estão escondidas na poesia do Drummond sobre a relação dele com essa ideia do progresso. Esse trem que não para, essas buzinas, essa espécie de síndrome. Itabira [cidade onde nasceu o poeta e sobre a qual ele se refere em sua produção], aquela cidadezinha, aquele lugarzinho que parece um presépio com uma igrejinha, com ruinha, aquilo é inteiro destruído e devorado. E agora é a cidade da mineração, da indústria, daquela fissura capitalista. Sem limites. É um sem fim.

  • G |Como está a situação do rio que abastece a sua comunidade desde o desastre de Mariana?

    AK |

    Nosso rio, que passa a 300 metros do quintal de casa, está há quatro anos com aquela lama da mineração de Mariana. Depois, Brumadinho arrebentou e foi em cima de um outro rio aqui. Nós estamos vendo os nossos rios sendo assassinados. Essa lama da mineração incontida, babando em cima da nossa existência. Essa buzina da Vale que não para de apitar. E esse capitalismo que parece que é mais fácil acabar com o planeta, do que mudar o capitalismo. Alguém já disse isso.

  • G |Você diz no seu livro, “O Amanhã não está à Venda”, que os índios vivem encurralados e refugiados no seu próprio território por muito tempo. Como é isso?

    AK |

    A nossa reserva indígena Krenak foi criada pelo governo para colocar um limite na gente. Ela foi o habitat dos nossos antepassados desde muito antes da colonização. E aí quando os colonos começaram a entrar aqui o governo criou uma reserva, em 1923, e prendeu esses sobreviventes Krenak nessa reserva. Se a gente saísse, levava um tiro. E aí quando falaram que era para  fazer uma quarentena, o pessoal daqui, óbvio, falou ‘ah, quarentena. É mole, né’. A gente vê um certo sofrimento e pânico nas pessoas que ficam desesperadas de serem contidas, mas nós vivemos contidos aqui durante muito tempo. Essa contenção foi assimilada de alguma maneira por uma visão crítica que nós temos do mundo ao nosso redor, porque se a gente ficou aqui tão confinado, deu para observar o mundo em volta. E nós estamos vendo o mundo em volta em uma corrida para a destruição.

  • G |Poderia sintetizar como é que está a situação do povo indígena numa pandemia como essa?

    AK |

    O povo indígena sente a mordida como já sentiu em outras épocas. Nós somos uma parte da humanidade que tem uma história colonial, então tudo que incide sobre essa existência dentro desse padrão é um lugar de sofrimento. Mesmo que as pessoas não incorporem essa ideia de vítima, o lugar social desses povos é aquele que o Eduardo Galeano designou quando ele disse que as serpentes preferem picar os pés descalços. Estou falando sobre a América Latina, onde quem tem sapato é rico. Os índios são os descalços da América Latina. Onde tem gente indígena tem a experiência de vida coletiva, então esse vírus é uma desgraça.

  • G |Como é que está a sua rotina aí?

    AK |

    Eu não tenho rotina, eu desbaratinei a rotina. Você pode fazer uma desrotina. Desrotina é quando você tem consciência de que está manejando a sua experiência durante o dia para viver aquele dia. É legal isso. E você responde a sinais que são próprios do seu corpo, e ao ambiente externo seu. Claro que se estivesse chovendo hoje eu não teria saído para fazer caminhada aqui. Tem um dia bonito, um sol cheio de vitamina. Eu saí, peguei vitamina do sol, foi agradável, gostoso, voltei para o lugar que estou na sombra. E não tem rotina, porque se não eu ia, sei lá, tentar fazer um exercício mesmo se estivesse chovendo.

  • G |Cada vez mais se fala sobre o uso de substâncias como a Ayahuasca como uma forma de reconexão com a natureza e com o planeta e como uma forma de quebra de limites da consciência. Qual é a sua opinião?

    AK |

    Essas plantas de poder estão na história da humanidade desde muito tempo. Todos os povos, em diferentes épocas, tiveram acesso. Na década de 1950, tinham uns americanos que andavam pela Colômbia, México, Peru, em contato com xamãs, os pajés, caçando plantas e conhecimento. Aqueles amigos do Jack Kerouac eram muito curiosos, mas eles estavam querendo fazer experiências psicodélicas. O pensamento indígena não vai por esse caminho. É um equívoco confundir as experiências, a formação de alguns mestres indígenas, com esse caminho da psicodelia. Não é isso. É uma reverência, uma observação silenciosa e respeitosa das vozes que não são humanas. Você pode aprender com uma planta, mas também com uma onça, um pássaro, uma pedra. É possível aprender com tudo que está ao seu redor porque você não é separado de nada, então não tem limite. A fronteira entre o que uma planta pode me ensinar não é exatamente a ingestão dela, mas a minha comunhão com o espírito dessa planta onde elas continuam no seu estado natural, e eu também. Cada um na sua. Mas todos experimentando uma mesma experiência sensível, numa linguagem que não é humana.