Lia Bock conta como negociar com a família é uma tarefa constante e necessária — Gama Revista
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Depoimento

"Me convence que eu deixo"

Cinco crianças, duas mães, três pais e dez avôs e avós envolvidos. Na família da jornalista Lia Bock é preciso muita negociação para a coisa funcionar

Lia Bock 05 de Julho de 2020
©Renata Mein

“Me convence que eu deixo”

Cinco crianças, duas mães, três pais e dez avôs e avós envolvidos. Na família da jornalista Lia Bock é preciso muita negociação para a coisa funcionar

Lia Bock 05 de Julho de 2020

Muita gente pensa que para a vida com muitos filhos dar certo é preciso uma organização militar. Isso significa tratar as crianças como um pacote único, ter regras estritas e comandos que disparam o cumprimento delas com rigor. Funciona? Não faço ideia. Não somos muito fãs da militarização da vida e acreditamos que se for chato não é funcional, afinal, a vida é tudo que acontece enquanto a gente planeja o que vai fazer da vida.

E é por isso que passamos grande parte do nosso tempo em família negociando. Digo nós porque me refiro a mim e ao Gabriel, meu companheiro nesta jornada de criar, educar, alimentar, banhar, empurrar e conter cinco crianças.

Aqui se negocia tudo e não são raras as vezes em que digo: “Me convence que eu deixo”. E vejam, até para jogar tempo extra no videogame existem argumentos bons: “O jogo é online e em equipe, parar agora prejudicaria meus pontos e também o meu time”. Me convenceu.

Agora multiplica isso por 5 em idades que vão de 2 a 11 anos. Sim, passamos a vida barganhando com crianças. E antes que você revire os olhos, te garanto, é bem mais saudável e agradável do que passar os dias tentando botar os pequenos na linha, obrigando, gritando e fiscalizando. É claro que não dá pra fugir do papel de bedel da própria casa, mas escutar o que as crianças têm a dizer e exigir deles argumentos plausíveis não é só ser bacaninha, é educar.

Escutar o que as crianças têm a dizer e exigir deles argumentos plausíveis não é só ser bacaninha, é educar

Os pais que escolheram outras formas de agir que me desculpem, mas pra mim não basta obedecer às regras, é preciso entendê-las e saber por que são importantes. E isso a gente não faz obrigando, a gente faz explicando e claro, negociando.

Viver neste sistema é trabalhoso mas penso que lá na frente nossos filhos estarão muito mais preparados para o que o mundo exige dos adultos do que quem obedeceu ordens sem questionar e fez o que era pedido por medo de ter que pagar o descumprimento em flexões ou tempo pensando no cantinho.

Criança tem que ter respeito e não medo dos pais. E respeito a gente conquista com argumentos. “Ah, mas você jura que sempre convence seus filhos a tomar banho e arrumar os brinquedos?”. Claro que não, e é por isso que dá trabalho. É por isso que muitas vezes nossa vida parece um caos – e talvez seja mesmo. De fato estamos sempre negociando diversos assuntos ao mesmo tempo com crianças de idades e demandas diferentes. E enquanto fazemos isso estamos também nos esforçando para que eles cumpram os combinados regulares e os feitos no dia anterior. Cansa só de pensar, né? Eu sei. E tem gente que acha que difícil é equilibrar os contatinhos.

Uma coisa muito importante numa família grande (e no melhor estilo os meus, os seus e os nossos) é o conceito de que negociar envolve cumprir o combinado. Aqui palavra é uma coisa muita valiosa e depois de selado um acordo é preciso segui-lo. Isso vale tanto com os pequenos, como entre os adultos. Somos uma família que tem duas mães, três pais e dez avôs e avós envolvidos (pra ficar só no núcleo duro). Imagina se cada um resolve fazer um puxadinho aqui e outro ali nos combinados? Não tem sanidade e Excel que aguente. Por isso é importante negociar apenas quando a tabela está aberta para tal. Depois que fechou é fé na vida e pé na estrada. Nesse caso é civilizado porque é rígido e é rígido porque civilidade importa.

Quando os envolvidos estão sinceramente abertos a chegar num ponto intermediário a coisa já está meio caminho andando

E se alguém se opuser, meritíssimo? É bom que tenha um argumento muito convincente. Porque that’s all about: sempre existe tempo e espaço para argumentos bons – bem-vindos à vida de quem vive negociando em família. Uma viagem sensacional, a visita de um parente de fora, aniversário de pessoas queridas e por aí vai. “Mas e se o argumento parecer bom pra um mas não pros outros?”. Nesse caso a solução é mediação: pessoas de confiança e com bom senso que auxiliem no melhor encaixe para aquele assunto.

E vejam, eu não estou dizendo (de forma alguma) que é tudo um mar de rosas. Tem treta? Tem. Tem raiva? Às vezes tem. Mas quando todos os envolvidos estão sinceramente abertos a chegar num ponto intermediário a coisa já está meio caminho andando. Porque, claro, se no meio do imbróglio tiver um mau-caráter qualquer, ou alguém que foi criado achando que vale a lei do mais forte (mais rico ou do que grita mais alto) fica complicado mesmo. Sabemos bem que com desonestos não dá pra negociar – me compadeço por quem divide os boletos com esse tipo de gente. Por desonestos eu considero aqueles que não sabem cumprir os combinados e que usam a negociação só para ganhar tempo, porque no fundo não acreditam nela e querem mesmo é a coisa do seu jeito. Disso as varas de família estão cheias.

Por isso, ensino meus filhos que desonestidade é uma das coisas mais abomináveis do mundo. E eles entendem. Porque no caso das crianças, ser desonesto é perder a maravilhosa oportunidade de negociar e, assim, cair na vala da regra crua e, talvez, do que chamam por aí de educação militar, onde eu mando e você obedece.

Lia Bock é jornalista, mãe de quatro e madrastra de uma. É comentarista na CNN Brasil, colunista do Universa (UOL) e autora do “Meu Primeiro Livro”, um diário do bebê inclusivo publicado pela Companhia das Letras