"Agora": João Anzanello Carrascoza escreve sobre saudades — Gama Revista
Deu saudade?
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Ficção

Agora

Em texto inédito para a Gama, o escritor João Anzanello Carrascoza descreve o sentimento de um filho diante da mãe que está partindo — quando então se inicia a saudade

João Anzanello Carrascoza 14 de Junho de 2020

Agora

Em texto inédito para a Gama, o escritor João Anzanello Carrascoza descreve o sentimento de um filho diante da mãe que está partindo — quando então se inicia a saudade

João Anzanello Carrascoza 14 de Junho de 2020

Minha mãe. Ela está aqui, em sua cama, sem se mover, os cabelos, que um dia foram longos e negros e me encantavam penteá-los, esparramados sobre o travesseiro, os olhos presos já à paisagem do outro mundo, e, por isso, certamente ela não sabe que eu, à sua cabeceira, sou o seu menino, aquele que a machucou tanto quando nasceu. Meu pai dizia que eu não estava na posição ideal para sair do ventre dela, por pouco o médico não usou o fórceps – e era apenas a primeira das dores que iria lhe causar, dentre as tantas que, pela vida afora, seguidamente, eu partilharia com ela na esperança de que as amenizasse; até poucos anos, ignorei que minha mãe não podia me curar as feridas, e, assim, sem querer, acabava aumentando as dela cada vez que lhe contava uma das minhas.

Minha mãe. Ela está aqui, e eu sentando à sua cabeceira nessa poltrona onde, desde criança, eu a encontrava sempre com um livro na mão, a porta entreaberta, Pode entrar, filho, ela dizia, às vezes sem nada dizer, sempre me dando as boas vindas com seu sorriso e me deixando entrar no silêncio de sua leitura. E, agora, sequer tivemos tempo de nos despedir. De súbito, ela não tinha mais consciência de nada – e o que é a vida se não sabemos quem está à nossa frente? Que fortuna temos, se encontramos só o vazio nos olhos de quem nos vê?

E, agora, sequer tivemos tempo de nos despedir. De súbito, ela não tinha mais consciência de nada – e o que é a vida se não sabemos quem está à nossa frente?

Embora seu corpo possa dizer o contrário, a minha mãe ainda está ali. Minha mãe, que eu via desaparecer, aos poucos, atrás das roupas que ela ia estendendo no varal, e, de repente, ressurgir do meio daqueles lençóis brancos, com os quais ela forrava a sua e a minha cama; minha mãe que passava, tão lépida, pela sala, para desligar o forno onde o bolo de fubá crescia rápido, bem mais rápido do que eu; a vida se demorava em mim, demorava tanto que eu era incapaz de perceber a sua raridade. Daqui, eu posso vê-la do jeito que ela realmente é: minha mãe continua a mesma, diante dos meus olhos, embora imersa numa matéria cujas formas eu a vi tomar, e não a reconheço. Minha mãe que, quando eu corri a lhe contar a minha primeira decepção, disse, Já passou, filho, e, abraçando-me, completou, Esqueça, agora você está aqui! Como se estar aqui, com ela ou não, como se estar aqui, no agora, há minutos da dor, ainda que a sentindo reverberar em mim, fosse já a sua cura, o fato maior e redentor, porque nenhum momento vivido, alegre ou triste, nada que permanecesse preso ao passado, poderia superar o agora.

E assim foi, depois que cresci, durante a minha vida inteira, minha mãe aqui, eu a andar pelo mundo, ciente de que a finitude se aproximava dela como um rochedo instransponível, e, estivesse onde estivesse, perto ou longe – às vezes, aqui mesmo, em casa, quando vinha visitá-la – sempre que me feriam, eu me recordava de suas palavras, e sabia que, quanto mais me distanciasse do instante em que o ferimento sangrara, quanto mais encharcado de presente, menos a dor me abalaria, a memória não é hábil o suficiente para dissipar a consistência férrea da realidade.

E assim foi, depois que cresci, durante a minha vida inteira, minha mãe aqui, eu a andar pelo mundo, ciente de que a finitude se aproximava dela como um rochedo instransponível

Minha mãe. Ela está aqui, em sua cama, e, lá fora, os satélites no espaço sideral continuam a gravitar em torno dos planetas, as formigas vão carregando folhas verdes do canteiro que ela até outro dia cuidava com esmero, e o silêncio segue em luta para amordaçar os estalos da madeira desse assoalho que são, também, ecos sufocados dos nossos passos. Sobretudo dos meus, desses últimos dias, que me fazem ir até ela ininterruptamente, para traduzir seus gestos em pedidos, voltar a me sentar nessa poltrona, erguer-me de novo e caminhar em direção à janela, observar minha mãe outra vez, e, embora ela esteja aqui, e eu ali, sair em busca, na memória, daquela que eu vi tantas vezes fazer o meu agora mais leve, os braços que me ajudavam a tornar o passado mais passado e, assim, me resgatar para a consciência viva do instante. São ecos sufocados dos nossos passos, sim, sobretudo dos meus, dos últimos dias, quando voltei para cuidar de minha mãe – os dela, apenas os antigos, impregnados de ontem, reverberam no assoalho, esse assoalho que a sola de seus pés, antes de calçarem as velhas sandálias todas as manhãs, já deixaram de tocar.

Minha mãe. Ela ainda está aqui, apesar de ignorar que já foi embora. E nada é mais forte que a sua presença, nesse instante, em mim. Nenhum momento, nem o mais sublime que eu vivi, pode superar o agora. Mesmo sendo este agora o que mais me dói – o minuto inicial da saudade.

João Anzanello Carrascoza é escritor, autor de contos e dos romances que compõem a ‘Trilogia do Adeus’ (Alfaguara, 2017), entre outros. Suas histórias foram traduzidas para diversos idiomas e premiadas com Jabuti, APCA, Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Fundação Biblioteca Nacional e os internacionais Guimarães Rosa (França) e White Ravens (Alemanha)