Afinal, o que é amizade? — Gama Revista
E os amigos?
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Semana

O que você sabe sobre a amizade?

Como, onde e por que construímos e às vezes destruímos nossos relacionamentos com amigos? Gama conversou com experts no tema

Mariana Payno 02 de Agosto de 2020

O que você sabe sobre a amizade?

Mariana Payno 02 de Agosto de 2020
© Caco Neves

Como, onde e por que construímos e às vezes destruímos nossos relacionamentos com amigos? Gama conversou com experts no tema

Por que fazemos amigos?

Basicamente, porque eles nos fazem bem — uma resposta intuitiva que cientistas já comprovaram de diversas formas. Para começar, hormônios que provocam sensações de prazer e felicidade, como a ocitocina, estão diretamente envolvidos nas relações de amizade. Além disso, outros estudos já provaram que ter bons amigos pode aumentar nossa expectativa de vida, diminuir as chances de desenvolvermos uma doença cardíaca e melhorar nossa saúde mental na vida adulta. “Nossa saúde física e mental e mesmo [coisas como] a frequência com que nossos filhos ficam doentes dependem de quantos amigos nós temos”, explica a Gama o antropólogo e psicólogo Robin Dunbar, da Universidade de Oxford, um dos grandes investigadores do tema no mundo. “O desejo de ter amigos nos é intrínseco porque eles nos dão suporte.”

Nossa saúde física e mental e mesmo [coisas como] a frequência com que nossos filhos ficam doentes dependem de quantos amigos nós temos

Não à toa, nos cercamos por essa espécie de família eletiva: entre amigos, nos sentimos valorizados, queridos e compreendidos. “Eles satisfazem nossas necessidades sociais e também oferecem apoio emocional”, diz Beverley Fehr, professora do Departamento de Psicologia da Universidade de Winnipeg, no Canadá. “Pesquisas mostram que quando precisamos de ajuda financeira tendemos a recorrer aos familiares, mas se precisamos abrir nossos corações sobre o que está acontecendo, nós frequentemente nos voltamos aos amigos.”

Quantos amigos podemos ter?

Ao contrário do que as redes sociais podem sugerir, parece haver um limite biológico para o número de amizades que conseguimos manter. Em um de seus estudos, Dunbar constatou que só há espaço no nosso cérebro para 150 amigos — o restante seriam apenas “conhecidos” —, coisa que ele não acredita ter mudado com a internet. “É um limite cognitivo no cérebro”, diz o antropólogo. “Também há uma limitação de tempo: para criar amizades nós temos que investir nas pessoas, e o tempo não é infinito.”

Há espaço no nosso cérebro para 150 amigos — o restante seriam apenas “conhecidos”

Essa questão pode levar ao debate sobre o que seriam “amigos de verdade”. Em 2011, uma pesquisa da Universidade de Cornell identificou que a grande maioria dos adultos tem apenas dois “melhores amigos”, isto é, pessoas que os entrevistados consideravam como confidentes. “Se pensarmos na amizade como um relacionamento em que há confiança, interdependência, abertura mútua, suporte emocional e social, essas qualidades não estariam presentes quando uma pessoa tem um número enorme de amigos”, avalia Fehr.

É possível ter amigos no trabalho?

Esta é outra situação em que as “amizades verdadeiras” são colocadas em jogo. Embora pesquisas apontem que trabalhar entre amigos torna as pessoas mais produtivas e que o trabalho seja visto pelos especialistas como uma fonte corriqueira para criar essas relações, a hierarquia dentro das empresas pode colocá-las em risco. “É mais desafiador quando há uma diferença de status entre as duas pessoas, já que a amizade é frequentemente definida como um relacionamento entre iguais”, afirma a professora da Universidade de Winnipeg.

É mais desafiador quando há uma diferença de status entre as duas pessoas, já que a amizade é definida como um relacionamento entre iguais

É por isso que a socióloga Jan Yager, autora de diversos livros sobre o assunto, cunhou o termo “workship” para descrever pessoas que são mais do que colegas de trabalho, mas menos do que amigas. “Com o tempo, a ‘workship’ pode se transformar numa amizade”, diz ela a Gama. “É possível fazer amigos [no ambiente de trabalho], especialmente se estão no mesmo cargo. A complicação é se um dos amigos é subordinado ao outro: aí pode haver acusações de favoritismo ou situações difíceis quando alguém precisa escolher entre a amizade e o que é melhor para a empresa.”

Por que é mais difícil fazer amigos depois de uma certa idade?

Uma sensação frequente que, na verdade, tem menos a ver com a idade em si do que com os rumos que a vida toma. Depois que saímos da escola ou da faculdade e entramos em uma rotina de trabalho, casamento e filhos, fica mais difícil encontrar tempo (e espaços) para fazer novos amigos. Para pesquisadores das universidades de Aalto, na Finlândia, e Oxford, no Reino Unido, essas oportunidades começam a ficar mais raras a partir dos 25 anos, quando passamos a perder contatos e a deixar de substituí-los. “Simplesmente nos falta energia”, resume Robin Dunbar.

Quando entramos em uma rotina de trabalho, casamento e filhos, fica mais difícil encontrar tempo (e espaços) para fazer novos amigos

Para Beverley Fehr, as “circunstâncias da vida” são um grande fator a ser considerado. “Entre o começo e o meio da vida adulta, as pessoas são frequentemente consumidas pela família e pelo trabalho. Para quem muda de cidade, por exemplo, pode ser difícil fazer novos amigos porque as pessoas com quem cruzamos caminhos já têm uma vida ocupada; outro desafio que as pessoas aposentadas podem experienciar é perder o espaço de trabalho como uma fonte de amizades”, diz ela.

Por que algumas amizades permanecem e outras se perdem?

Aquela turma enorme e unida do colégio, depois de uns anos, acaba encolhendo para dois ou três amigos de infância. Por quê? Seguir caminhos diferentes também pode ser a resposta para essa questão. “Muitas amizades não duram por causa de fatores situacionais, como uma pessoa se mudar, ter filhos ou um trabalho que demanda muito. Amizades também podem terminar quando duas pessoas estão em diferentes fases da vida — por exemplo, uma amiga escolhe ser uma mãe que fica em casa enquanto a outra escolhe focar na carreira”, avalia Fehr. “Nesses casos, a intenção geralmente é manter a amizade, mas essas novas situações podem dificultar a continuidade do contato.”

Ter amigos tem a ver com a validação das nossas visões e crenças. Somos atraídos por pessoas que vão reforçar que temos as opiniões e as atitudes ‘certas’

Dunbar defende que apenas as amizades mais próximas superam esses obstáculos. E uma das principais razões pelas quais esses vínculos se mantêm é a identificação com os interesses e a visão de mundo da outra pessoa. “Esse efeito é chamado de homofilia: nossos amigos tendem a ser como a gente”, explica o pesquisador. Estudos indicam que as amizades mais duradouras envolvem o apoio às nossas identidades sociais: são as famigeradas bolhas. “Ter amigos tem a ver com a validação das nossas visões e crenças. Somos atraídos por pessoas que vão reforçar que temos as opiniões e as atitudes ‘certas’ e também preferimos não passar nosso tempo com pessoas que vão discordar de nós. Se não temos nada em comum, vai ser bem mais desafiante e menos recompensador interagir”, diz Fehr.

Amizades terminam de vez?

Se as diferenças forem muito irreconciliáveis — o que, em tempos de polarização política, pode passar pela simples escolha de um candidato —, sim. “Existem rompimentos reais, geralmente como resposta a uma transgressão muito séria, como uma quebra de confiança, mas isso é menos frequente”, explica Fehr. Segundo ela, é mais comum se afastar aos poucos do que terminar uma amizade subitamente. “Talvez nos afastemos, mas os sentimentos continuem os mesmos, ou talvez nos afastemos porque os sentimentos não são fortes o suficiente para nos esforçarmos em manter a amizade.” De acordo com uma pesquisa holandesa, isso pode acontecer depois de sete anos com mais da metade das relações entre amigos.

Estudos mostram que mais da metade das amizades acabam depois de sete anos

E parece que pouco se pode fazer para salvar o vínculo quando a hora chega: seria o caso de tentar um diálogo construtivo? Se há controvérsias sobre a eficácia de os casais discutirem a relação, menos ainda se sabe sobre as DRs no que diz respeito às amizades. “O que sabemos é que os amigos geralmente não conversam sobre isso, especialmente os homens”, explica a psicóloga. Baseada em estudos científicos, ela conclui que os amigos preferem acreditar que é mais fácil resolver os problemas e conflitos “deixando quieto”.

O amor estraga as amizades?

Quem nunca “perdeu” um amigo que começou a namorar? Segundo Dunbar, que investigou as consequências de se apaixonar sobre as amizades, a resposta para essa situação quase sempre chata para os solteiros da turma é bem simples: tempo. “Qualquer nova amizade exige que a gente invista tempo para aprender sobre a pessoa e construir uma relação com ela, e esse tempo não pode ser dado a outra pessoa. O mesmo é verdade, mas pior, para um relacionamento amoroso”, explica ele. “Nossa pesquisa sugere que se nos apaixonamos por alguém, temos que sacrificar duas amizades.”

A pesquisa de Robin Dunbar sugere que quando nos apaixonamos por alguém temos que sacrificar duas amizades

A socióloga Jan Yager é mais otimista e aconselha que ninguém leve essa questão para o lado pessoal. “É um cenário comum e natural”, diz. “Se o romance der certo e os amigos forem pacientes, tudo será resolvido: os amigos vão encontrar tempo uns para os outros, e a amizade não tem que acabar para sempre só porque apareceu um novo amor.”

É possível fazer webamigos?

Não há dúvidas de que durante o isolamento social a internet se tornou fundamental para manter a chama das amizades acesas, com um happy hour online aqui, uma festinha por Zoom acolá. Na maior parte dos casos, essas eram relações que já existiam antes, fora do mundo virtual — mas será que é possível conhecer amigos pela internet e mantê-los apenas assim? “Sim, mas não frequentemente”, é a aposta de Dunbar. “Nossos estudos mostram que a internet é boa para impedir que as amizades se percam com o tempo, mas não tão boa para criá-las. Precisamos ver a pessoa em carne e osso, ser capazes de tocá-la.”

A internet é boa para impedir que as amizades se percam com o tempo, mas não tão boa para criá-las

Para Beverley Fehr, a resposta não é tão categórica. “Existe um debate na literatura sobre quanto contato humano as amizades exigem. Algumas pesquisas mostram que as amizades que fazemos online são superficiais e não particularmente satisfatórias, enquanto outras revelam que as pessoas podem formar e sustentar laços de amizade online”, diz. Os dois especialistas concordam que, no caso de relacionamentos amorosos, a interação fora do universo virtual é importante para a relação funcionar. “Nós nos apaixonamos não por uma pessoa real, mas pela imagem que criamos na nossa cabeça: até que possamos tocá-la, não a conhecemos de verdade”, explica Dunbar. Resta saber se a mesma lógica pode ser aplicada para as amizades — sobretudo na realidade pandêmica de afastamento dos encontros “reais”.