Renato Janine Ribeiro sobre desmonte das universidades: "Recompor será difícil" — Gama Revista
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Guilherme Falcão

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Conversas

"Temos hoje incompetentes desmontando tudo pela frente. Recompor será difícil"

Renato Janine Ribeiro, filósofo, escritor e professor da Usp, ressalta a “qualidade internacional” da pós-graduação brasileira, diz que um projeto de educação leva tempo e que reconstruí-lo após ações do atual governo será difícil

Luara Calvi Anic 04 de Abril de 2021

“Temos hoje incompetentes desmontando tudo pela frente. Recompor será difícil”

Luara Calvi Anic 04 de Abril de 2021
Guilherme Falcão

Renato Janine Ribeiro, filósofo, escritor e professor da Usp, ressalta a “qualidade internacional” da pós-graduação brasileira, diz que um projeto de educação leva tempo e que reconstruí-lo após ações do atual governo será difícil

Como professor, Renato Janine Ribeiro sabe que a formação de um indivíduo leva tempo, que a consolidação de um projeto de educação em um país também não acontece durante um único mandato de presidente. Ele, que foi Ministro da Educação do governo Dilma Roussef durante abril e setembro de 2015 — área com mais trocas durante esse mandato, seis no total — enxerga um desastroso retrocesso com o corte de verbas na educação e ataques do atual governo ao conhecimento científico.

“A pós-graduação é o único nível de ensino no Brasil que realmente tem qualidade internacional”, diz a Gama. “Desde o Itamar Franco, passando pelo Fernando Henrique, Lula e Dilma você teve uma continuidade na educação — com muito mais ímpeto dos governos petistas, mas já tendo começado desde Itamar Franco, que foi um bom presidente. E é um trabalho de muito longo prazo. Quando você corta isso volta um monte de casas.”

Paulista de Araçatuba, aos 71 anos ele é professor-titular da cadeira de Ética e Filosofia política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Entre outras obras, é autor de “A Sociedade Contra o Social: o alto custo da vida pública no Brasil” (Companhia das Letras, 2000), livro que lhe rendeu Prêmio Jabuti de Literatura em 2001. Ainda este ano, deve lançar dois títulos: “A Neve Quente dos Trópicos” (Estação Liberdade), um romance histórico que imagina o que seria o Brasil se a família real portuguesa não tivesse vindo pra cá; e “Maquiavel, o Brasil e a Democracia”. Confira a seguir a entrevista que ele concedeu a Gama.

  • G |Quais mudanças relacionadas ao acesso às universidades puderam ser vistas desde o governo do PT, do qual você foi Ministro da Educação durante um período?

    Renato Janine Ribeiro |

    O PT mudou completamente a universidade brasileira. Basta você ver que havia 3,94 milhões de estudantes universitários quando o Fernando Henrique saiu [em 2003], e quando Dilma saiu [em 2016] o número estava em 8.052. Quer dizer, o Brasil dobrou esse número. Uma parte da expansão foi nas federais com a abertura de vagas [de 2002 a 2014, o número de instituições federais de ensino superior cresceu 31%; as matrículas na graduação, 86%; e na pós-graduação, 316%], mas também no privado, isso também graças ao Fies. Houve uma expansão não apenas numérica em termos absolutos, mas em termos percentuais, o que tirou a ideia de que o ensino superior era para poucos. E você vê isso com a política de cotas, uma política muito mal compreendida e que foi alvo de uma campanha muito sórdida, mas além disso de muita ignorância.

  • G |Qual a principal confusão que se faz em relação às cotas na sua opinião?

    RJN |

    Muita gente acha que a política de cotas é de cotas étnicas, raciais como dizem. Quando, na verdade, a política de cotas significa metade das vagas federais para cada curso e período destinadas à quem vem do ensino público. E, dentro dessa porcentagem, você tem um percentual étnico que corresponde ao percentual de negros e de indígenas e descendentes em cada unidade da federação. Ou seja, em cada estado você tem o percentual apurado pelo recenseamento da população. Uma pessoa negra ou indígena que, por exemplo, fez escola privada não tem direito de se beneficiar de cota porque a cota é social antes de mais nada. É importante frisar isso porque há muita gente que diz que a cota não deveria ser racial, mas por pobreza ou por escola pública; mas já é por escola pública! Uma pessoa que fez escola pública ela teve muito menos chance na sua formação de quem fez uma escola particular. Então se o aluno da escola pública conseguiu alcançar uma nota 10% abaixo de alguém que fez escola particular é sinal de que ele é muito bom, é bom demais. Há estudos que mostram que em um, dois anos, esses alunos de escola pública nivelam com os alunos da escola particular. Isso, claro, varia conforme curso, etc, mas são pessoas de muita qualificação [essas que conseguem entrar].

  • G |Falando em ensino superior para poucos, queria tratar do acesso de pessoas mais pobres a cursos como medicina — um curso integral que não permite que os universitários trabalhem. Que tipo de adequação a universidade precisa fazer para se adaptar a essas diferentes realidades?

    RJN |

    Precisa ter bolsa de permanência. Uma das questões cruciais que o MEC colocou em discussão na gestão do Tarso [Genro, Ministro da Educação durante parte do governo Lula – 2004-2005], era acesso e permanência. Acesso, claro, são as cotas, políticas de ingresso e inclusão social. Mas não adianta ter acesso se não tiver permanência. E a permanência é o que? Bolsa, residência estudantil, refeitório universitário. E a manutenção de uma bolsa para a pessoa além de comer e dormir, poder comprar livros, ver um filme, viver. Não adianta criar o programa de cotas e “agora se virem”, até porque muitos estudantes vêm de outras cidades. Isso sem contar outras questões, como dramas psicológicos. É preciso ter um serviço social na universidade que seja capaz de atender essas pessoas. Tem sempre que planejar levando em conta tudo, não pode pensar que a responsabilidade com educação se esgota na sala de aula.

  • G |Então pensando no papel da universidade fora da sala de aula, qual a importância da atuação do chamado “intelectual público” na sociedade?

    RJN |

    Desde o fim da ditadura militar, o Brasil teve uma presença forte dessas pessoas, e inclusive uma grande demanda da mídia em relação à universidade, para discutir questões. Eu chamo de intelectual público aquele que examina os valores do que está em debate. É uma discussão eminentemente ética a do intelectual público, sobre o que é justo e o que é injusto; eu não gosto de usar as palavras certo e errado. Por isso muitos [dos que falam ao público] são de humanas, eles discutem a repercussão sobre a sociedade das questões econômicas, sanitárias, médicas, políticas, etc. Outros, como Drauzio Varella, Paulo Saldiva, Margareth Dalcolmo, pegando três que são da área médica, têm toda a informação científica mas adquiriram conhecimento sobre sociedade, política, sociologia. O Drauzio praticamente foi quem transformou a medicina em assunto de conhecimento público. Ele está aí há 30 anos falando de cuidados de medicina. Tem muita gente que aprendeu a cuidar do colesterol graças aos programas e falas do Drauzio. A gente tem que ter programas como esse para falar da sua psique, de como você faz escolhas políticas.

  • G |O Brasil é um país com grandes pesquisadores e cientistas, tanto que eles estão aí na mídia fazendo toda essa divulgação. Mas isso não parece ser visto como um atributo da nossa identidade, especialmente nestes tempos de ataques à ciência. Por que isso acontece?

    RJN |

    Porque o Brasil não valoriza o conhecimento. Ao contrário, você tem uma sociedade em que isso tudo é constantemente ridicularizado. O Bolsonaro não surgiu por acaso. Ele emana de um negócio que é uma espécie de ignorância soberba. O ex-governador de Rondônia, por exemplo, aparece sem camisa mexendo num soldador e dizendo que o aparelho evita covid, mata o vírus. Então você tem essa coisa totalmente louca em um país onde alguém acha que pode falar isso de boa, sem ter vergonha. Com isso, é como se o cientista, o intelectual ele fosse um bicho esquisito, não é alguém que sente que o trabalho dele é valorizado. Pode ser valorizado no exterior, mas no Brasil há um grande descaso em relação a tudo isso, o conhecimento não é visto como uma coisa valiosa.

  • G |O país vem tendo cortes no investimento em educação com o governo Bolsonaro. De que maneira isso será realmente sentido nos próximos anos?

    RJN |

    Esse governo é uma catástrofe em todos os pontos de vista e conseguir recompor o Brasil depois disso vai ser muito difícil. E vai ser um custo para todo mundo. Se o custo for justo, vai ter que cobrar mais dos mais ricos, que é o que esse governo não fez. Numa crise desse tipo, quando você tinha que dar auxílio emergencial, não tinha que ter déficit, mas ter um imposto emergencial sobre as fortunas, as altas rendas. Nada disso foi feito. A classe alta não quer pagar mais imposto então aumentam os custos ou você tira os serviços que atendem as classes pobres. Piora a educação, a saúde, o transporte público, a segurança nos bairros pobres. São os quatro serviços que um estado proporciona. Desde o Itamar Franco, passando pelo Fernando Henrique, Lula e Dilma você teve uma continuidade na educação, na saúde. É um trabalho de muito longo prazo. Quando corta isso voltamos um monte de casas. De um modo geral, temos hoje incompetentes desmontando tudo o que tem pela frente. A reconstrução disso vai ser difícil.

  • G |Ao longo da história do país, quais foram as principais escolhas do Brasil em relação ao ensino superior – tema desta edição da Gama. Como essas escolhas impactaram em um projeto de país?

    RJN |

    O Brasil demorou muito para ter universidade. Nosso ensino superior começa no século 19. Na América hispânica, começou nas primeiras décadas da colonização. A universidade mais antiga das Américas é de 1551 [Universidade Nacional Maior de São Marcos, em Lima]. Exatamente 383 anos antes da fundação da Usp. As universidades do período colonial no Brasil permitiram que o país formasse uma elite. Então você tinha uma coisa que era elitista, oligárquica, mas era brasileira. Melhor do que formar esse pessoal todo em Coimbra. Quase todos os presidentes da República Velha se formaram na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, que ainda não era a Usp. Quando teve a criação da Universidade do Brasil [1920], atual UFRJ, e da Usp [1934], passou a ter um trabalho em outras áreas como ciências, engenharia, tudo isso foi se desenvolvendo. Nós fomos capazes de formar bons profissionais. A partir de um certo momento, dos anos 1960 e 70, bons pesquisadores. Temos uma pós-graduação muito boa no Brasil graças ao Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, que atua na expansão e consolidação da pós-graduação]. O sistema de avaliação da Capes garante que a pesquisa seja boa e faz com que nossa pós-graduação seja o único nível de ensino no Brasil que realmente tem qualidade internacional. O lado complicado é que nós nunca conseguimos ter uma educação básica realmente de qualidade, comparável à Argentina, Chile, Uruguai. Aí é nosso problema, nossa dificuldade. A educação é um projeto de muito longo prazo, então é difícil.