Como os livros e o mercado editorial sobrevivem as crises no Brasil? — Gama Revista
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Guilherme Falcão

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Como os livros sobreviveram a sucessivas crises no Brasil?

Ainda que passando por maus bocados, editoras e livrarias encontraram alternativas para manter os livros vivos até aqui. Agora, porém, especialistas temem que a nova taxação inviabilize de vez os negócios livreiros no país

Mariana Payno 06 de Setembro de 2020

Como os livros sobreviveram a sucessivas crises no Brasil?

Mariana Payno 06 de Setembro de 2020
Guilherme Falcão

Ainda que passando por maus bocados, editoras e livrarias encontraram alternativas para manter os livros vivos até aqui. Agora, porém, especialistas temem que a nova taxação inviabilize de vez os negócios livreiros no país

Vamos combinar: tudo que um mercado em crise menos precisa é da diminuição dos estímulos para superar as adversidades e crescer. Foi exatamente o que aconteceu com o mundo do livro no Brasil, que em agosto recebeu amargamente a notícia de que poderia ser atingido pela reforma tributária do ministro Paulo Guedes — perdendo o benefício da isenção de impostos conquistado há anos (veja mais no box abaixo) e que faz a roda girar, mesmo em momentos difíceis. A medida ainda será votada pelo Congresso.

A verdade é que o mercado editorial brasileiro vem sofrendo duros golpes na última década. Depois de um momento de profissionalização e ascensão entre os anos 1990 e 2000, editoras e livrarias passaram a enfrentar sucessivas crises. “Até 2014, o mercado veio muito bem em termos de qualidade editorial e qualidade das livrarias. As livrarias brasileiras nesse período viveram um momento muito interessante, com lojas de alta qualidade a nível mundial”, lembra Rui Campos, dono da livraria Travessa.

Por mais pessimistas que fossem as previsões, o advento dos e-books não surtiu tanto efeito por aqui, abocanhando uma porcentagem pequena do mercado. A chegada da Amazon ao país em 2012, no entanto, tornou a batalha de preços do livro físico desigual e fez as grandes redes tentarem mudar o próprio modelo de negócios para competir com a gigante de Jeff Bezos — o que não funcionou. “Na ânsia de entrarem para o mundo do comércio virtual e se transformarem em grandes lojas de departamento em e-commerce, elas perderam a identidade e a qualidade”, avalia Campos. A primeira das megastores a cair foi a Fnac, que encerrou as operações no Brasil em 2017.

No ano seguinte, as duas maiores redes de livraria do país, Saraiva e Cultura, demitiram centenas de funcionários, fecharam dezenas de lojas e pediram recuperação judicial. Responsáveis até então pela venda de 40% dos livros no Brasil, elas deixaram para trás uma dívida de mais de R$ 300 milhões com as editoras +. No caso destas, a diminuição da compra de livros pelo governo, política crucial para a manutenção do setor, também não ajudou — e o fechamento da emblemática Cosac Naify foi simbólico.

Ano passado, as livrarias e as editoras grandes, médias, pequenas e micro, a custa de muito esforço, começaram a sentir que havia uma retomada

Ainda que, ao longo dos anos, o preço médio do livro tenha diminuído 34%, reduzindo os lucros e fazendo o mercado encolher 25%, o número de volumes vendidos aumentou no Brasil entre 2006 e 2018. Na contramão das aflições, editoras médias e pequenas começaram a surgir e até mesmo a crescer, livrarias menores abriram as portas e os clubes de leitura deram nova vida ao hábito. Afinal, parecia que os livros estavam recuperando o fôlego.

Nascia ali uma pontinha de otimismo de que 2020 seria um ano para a retomada, segundo Lucia Riff, dona de uma das maiores agências literárias do país. “No ano passado, as livrarias e as editoras grandes, médias, pequenas e micro, a custa de muito esforço, começaram a sentir que havia uma retomada. Havia várias crises, mas não uma crise de talentos, de criatividade, nem de leitores se bobear — porque agora temos mais editoras publicando mais títulos em quantidades menores, uma variedade imensa do público leitor”, diz ela a Gama. Veio, então, a pandemia, virando a economia do avesso.

Mesmo assim, o mercado editorial estava seguindo a toada da recuperação, inclusive com títulos sendo lançados em tempo recorde — caso daqueles que falam justamente sobre este momento. Agora, porém, os especialistas temem que a nova taxação inviabilize de vez os negócios livreiros no Brasil. Enquanto a reforma não é aprovada (e a torcida no setor é, claro, para que não seja), ficam as lições do que autores, agentes, editoras, livrarias e governos fizeram de certo crise após crise. A seguir, enumeramos fatores e estratégias que permitiram a reinvenção e a sobrevivência do mercado de livros no Brasil.

Curadoria especializada

Quando estamos afogados em inúmeras fontes de informação, possibilidades e conexões, a boa curadoria se sobressai, é o que defende Rui Campos. “O trabalho editorial de apresentar determinada linha conquista pessoas pela qualidade, e isso serve tanto para editoras quanto para livrarias”, diz ele, que em plena crise, em 2019, abriu duas novas unidades da Travessa, uma em São Paulo e outra em Lisboa. O segredo, para Campos, é encontrar nichos de público e investir em um conteúdo mais especializado.

Dentro do mundo do livro temos coisa demais. Então, nosso trabalho é conseguir trafegar por isso e conversar com uma parte do público

O mesmo vale para as editoras independentes e de pequeno porte, que se multiplicaram na última década. Ao descobrirem frestas de interesse no mercado, angariaram bons autores nacionais e internacionais, a fidelidade dos leitores e espaço em importantes vitrines, como a Festa Literária Internacional de Paraty. “O mercado independente tem a ver com isso de conseguir falar mais diretamente com o público, e de o público entender melhor o que você faz. Dentro do mundo do livro temos coisa demais. Então, nosso trabalho é um pouco conseguir trafegar por isso e conversar com uma parte das pessoas”, afirma Ana Paula Hisayama, uma das criadoras da editora Todavia.

Clubes de leitura

A repopularização dos clubes de leitura é o ápice da boa recepção dos movimentos de curadoria. Não muito tempo depois do encerramento, no ano 2000, do Círculo do Livro — fenômeno das editoras Abril e Bertelsmann que durou quase 30 anos e chegou a ter 800 mil inscritos — , o Brasil vê esse modelo ressurgir em iniciativas por assinatura, como as da TAG Livros, da Leiturinha e do Clube Intrínsecos. “Temos que lembrar que no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Belo Horizonte você encontra várias livrarias, mas essa não é a realidade da maior parte do Brasil. Para muita gente, receber um livro por mês, embaladinho e recomendado é uma coisa sensacional e uma senhora oportunidade”, avalia Lucia Riff.

Para muita gente, receber um livro por mês, embaladinho e recomendado é uma coisa sensacional e uma senhora oportunidade

Ela vê os clubes como uma forma de “manter as pessoas ligadas aos livros”. Não à toa, autores, livrarias e bibliotecas têm apostado em ações do tipo, que também são vantajosas para o público. “Os clubes ajudam a pessoa a escolher e os leitores confiam. É como seguir uma coisa básica e bem importante que a gente faz na vida: alguém te recomendando uma leitura”, diz Hisayama. Quando esse alguém é uma celebridade, os resultados podem ser ainda mais expressivos para o mercado —, porém os clubes do livro de famosos ainda não deslancharam no Brasil como no exterior. Por aqui, esse modelo poderia crescer, mas ainda engatinha em projetos como o da comentarista Gabriela Prioli.

Diversidade de publicações

Para um público diverso, títulos diversos. Apesar de o leitor brasileiro encontrar na Bíblia e em outros livros religiosos seu gênero favorito +, outros tipos de leitura atraem uma parcela significativa dos consumidores, se transformando em sucessos de venda. “Os livros históricos do Laurentino Gomes, por exemplo, são livros esperados. Paulo Coelho está aí há décadas como um best-seller imbatível. Na época da série ‘Crepúsculo’, as pessoas invadiam o stand da editora nas bienais. ‘Harry Potter’, ‘O Código da Vinci’, ‘O Segredo’ e, hoje em dia, ‘Sapiens’ foram coisas enormes”, enumera Hisayama.

Uma frente importantíssima agora é a do antirracismo. Há também todo o movimento de publicar livros sobre fascismo, democracia, história

Nesse mar de opções atraentes, enquanto alguns preferem mergulhar nas sagas de fantasia que arrebatam milhões de fãs mundo afora, outros escolhem navegar pela realidade. Em tempos de incerteza e transformações constantes, não é por acaso que os títulos de não-ficção têm alavancado as vendas — uma onda que os autores e editores souberam aproveitar. “Tem muito livro brasileiro entre os de não-ficção que estão estourando, em todos os gêneros: autoajuda, política, ensaios”, observa Riff. “Uma frente importantíssima agora é a do antirracismo. Há também todo o movimento de publicar livros sobre fascismo, democracia, história. São as questões prementes de hoje.”

Formação de leitores

Políticas públicas que promoveram e consolidaram a formação do público leitor brasileiro entre os anos 1990 e 2000 foram “o grande motor de contrafluxo” das crises do mercado editorial, na opinião do fundador da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz. “Os governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula e, parcialmente, o governo Dilma investiram em políticas de apoio à leitura e de desenvolvimento de bibliotecas em escolas públicas”, explica ele a Gama. “Isso não só alimentou parte do mercado com compras de livros, mas — o mais importante — formou leitores.”

De acordo com Schwarcz, foi um momento em que pessoas de classes mais desfavorecidas passaram a consumir mais livros, fato que não se dissocia da democratização do acesso à educação a partir da década de 2000. “Quando um número enorme de gente que nunca tinha frequentado as universidades chega lá, isso também reflete no mercado”, avalia Ana Paula Hisayama. “Os livros têm totalmente a ver com a educação, com fazer e manter novos leitores.”

Os livros têm totalmente a ver com a educação, com fazer e manter novos leitores

Embora a política de investimento na educação e na leitura do brasileiro tenha tomado outros rumos nos últimos anos e o Brasil, extremamente desigual, ainda esteja longe de ser um grande exemplo de país leitor, a herança desse período de maiores estímulos ainda pode ser sentida. Segundo os dados mais recentes da pesquisa Retratos da Leitura, do Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural, 27 milhões de pessoas nas classes C, D e E são compradoras de livros por aqui — o que representa quase um quarto dos consumidores. +

Entenda a nova proposta de taxação dos livros

A primeira medida de benefício fiscal aos livros no Brasil nasceu de um super especialista no assunto: foi o escritor Jorge Amado que, como deputado federal em 1946, apresentou uma emenda constitucional para isentar do pagamento de impostos o papel usado para imprimir livros, revistas e jornais. 

Anos depois, a medida passou a valer para os livros em si — pela Constituição de 1988, eles são considerados produtos isentos de tributação. Desde 2004, a lei também libera os livros do pagamento dos tributos federais sobre consumo, o Cofins (Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social) e o PIS (Programa de Integração Social). 

O cenário muda porque o projeto de reforma tributária do ministro Paulo Guedes unifica esses dois impostos, transformando-os na chamada CBS (Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços). Se a proposta for aprovada, os livros perdem o benefício da isenção e ficam sujeitos a uma taxação de 12%, a alíquota geral da CBS.

Este texto do Nexo Jornal explica em mais detalhes o plano de taxar os livros e suas possíveis consequências para o mercado editorial.