O que é a desvalorização do real e como ela afeta seu bolso — Gama Revista
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Guilherme Falcão

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Repertório

O real na real

O que significa a desvalorização histórica da moeda brasileira no seu bolso

Juliana Sayuri 17 de Janeiro de 2021

O real na real

Juliana Sayuri 17 de Janeiro de 2021
Guilherme Falcão

O que significa a desvalorização histórica da moeda brasileira no seu bolso

Real é um barão em baixa. Ao longo de 2020, foi a moeda que mais desvalorizou entre as 30 mais negociadas do mundo, segundo estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV). Na primeira sexta-feira de 2021, levou outro tombo e registrou a pior performance nos primeiros pregões pós-Réveillon desde 2003, conforme reportou a agência Reuters – nessa montanha-russa do mercado (o dólar subindo 0,31%; o real caindo 4,16%), passando a régua no dia 8 de janeiro, US$ 1 à vista valia R$ 5,4168.

Se o desempenho deixou a desejar entre economistas e investidores, para os outros não é muito diferente: cifras à parte, o real desvalorizado dói no bolso do brasileiro do café ao filé, do aluguel de uma quitinete a uma viagem à Disney. Em outras palavras, a desvalorização não é abstrata. Atinge o lado mais real do dinheiro, esse verbete cifrado que na língua portuguesa conta como sinônimos expressões tão singulares quanto bufunfa, bozoliros, grana, golpinhos, pila, tostões, vinténs e faz-me-rir. Na prática, a desvalorização quer dizer que nosso dindin não está valendo muito na fila do pão.

“A melhor forma de avaliar uma moeda é se seu poder de compra está ameaçado. Ou seja, como está a inflação, e o que se espera dela. Afinal, a inflação mede como o custo de vida varia ao longo do tempo”, define Mauro Rodrigues, professor de economia da Universidade de São Paulo (USP) e economista da plataforma Por Quê?, cujo slogan é “economês e financês em bom português”. No curto prazo, avalia Rodrigues, a situação ainda está “ok”: em bom português, os preços não estão subindo tão rapidamente a ponto de lembrar os tempos pré-real das memoráveis “remarcações de preços” das décadas de 1980 e 1990, por exemplo.

Já no longo prazo, pondera o economista, o cenário é mais nebuloso, pois depende de o governo conseguir “acertar as contas” de casa: “O lado fiscal já estava complicado antes da pandemia, mas piorou muito porque o governo precisou aumentar seus gastos (o que era necessário) e teve queda de arrecadação por causa da contração na atividade econômica. É preciso que o governo sinalize como fará o ajuste, mas até agora não fez”, diz. Segundo Rodrigues, além das oscilações do mercado, a falta de perspectiva para as ações do governo, a instabilidade política e as indefinições da pandemia também contribuíram para os tropeços dos bozoliros – uma depreciação “cavalar” de quase 30% ao longo de 2020.

Em julho de 1994, com R$ 100 era possível comprar cerca de 181 litros de gasolina (R$ 0,55 o litro). Hoje, R$ 100 não alcança um tanque

“Se os preços ficam subindo, os R$ 100 que você tem hoje não são os mesmos R$ 100 que você vai ter no fim do ano, pois ao longo de 12 meses, perdeu valor”, sintetiza a educadora financeira Luciana Fiaux, da plataforma Domine Suas Finanças. Um exemplo prático da diferença de valores de uma cédula: em julho de 1994, com R$ 100 era possível comprar cerca de 181 litros de gasolina (R$ 0,55 o litro) – na época, no início do Plano Real, o salário mínimo era R$ 64,79, destacou um expresso do Nexo; em janeiro de 2021, R$ 100 não alcança um tanque (a R$ 4,47 o litro, ficaria na casa dos 22 litros).

Pensando nas finanças diversas do dia a dia, Gama ouviu economistas e educadores financeiros para pontuar os impactos de quanto está valendo o real na real, num ano-novo já agitado por fatores como a alta da conta de luz, a possível alta não-tão-alta de preços de alimentos, a volta da cobrança do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e reajustes dos valores de aluguel, planos de saúde e tarifas de transporte. Se você trabalha ou busca trabalho, paga imposto e boleto, usa energia elétrica, aluga casa, alimenta-se e afins, faz diferença o quanto vale o faz-me-rir no fim do mês.

O que importa para quem importa

O preço de diversos produtos, combustíveis e commodities é afetado pelas cotações internacionais. O real mais fraco tende a favorecer exportadores e prejudicar importadores, diz Mauro Rodrigues, da USP. Trocando em miúdos, para cada US$ 1 exportado, o exportador consegue mais reais. Na outra ponta, o importador precisa gastar mais reais para arrematar a aquisição em dólares.

A lógica vale para empresas e para pessoas físicas que querem comprar produtos de fora, de um Roomba 960 a uma Alexa para chamar de sua. Em outubro de 2019, um Amazon Echo Dot (aparelho que abriga a inteligência artificial Alexa) foi lançado com o preço promocional de R$ 249 no Brasil. Em setembro de 2020, o modelo novo foi lançado a R$ 499.

…para quem investe

Em 2020, o dólar começou valendo R$ 4 em janeiro, saltou para quase R$ 6 em maio, caiu, voltou a subir em agosto, oscilou em dezembro. A desvalorização do real pode significar perdas ou ganhos, dependendo do perfil do investidor, assinala a economista Juliana Inhasz, professora do Insper. Para o investidor externo, o real baixo tornou investimentos financeiros no Brasil relativamente baratos; já o investidor doméstico pode ter sentido o potencial de investimento da moeda minguar.

Segundo o economista Charles Mendlowicz, o influencer financeiro conhecido como Economista Sincero, 2021 começa como um “momento de cautela”, “de aproveitar os investimentos que ainda tem possibilidade de alta”.

…para quem viaja

A desvalorização do real gera o aumento da taxa de câmbio, fazendo com que os gastos no exterior sejam mais caros. “Como tudo o que compramos fora é cotado em moeda externa, se nossa moeda compra menos moeda externa será necessário dispor de quantidades maiores de real para manter tais gastos. Logo, viagens tornaram-se mais caras”, diz Inhasz, do Insper.

É a sensação de que o real não vale nada, a velha história de que ‘quem converte não se diverte’, tudo fica caro

“Quando somamos esse efeito à redução do poder de compra, muito afetado pelo elevado desemprego, notamos que as viagens (sobretudo as internacionais) ficaram de fato inacessíveis para uma parcela significativa de brasileiros.”

Exemplo do impacto: o dólar turismo está cotado em cerca de R$ 5,85; o euro, mais de R$ 6,70; a libra esterlina, R$ 7,78. “É a sensação de que o real não vale nada, a velha história de que ‘quem converte não se diverte’, tudo fica caro”, acrescenta Luciana Fiaux. A alternativa: “Vale fazer a conta se não é mais viável um destino por aqui mesmo. Vivo brincando: que tal trocar a Disney pelo Beto Carrero?, Cancún pelo Nordeste?”, propõe Charles Mendlowicz. Outra opção é simplesmente engavetar projetos de viagens (afinal, pandemia).

…para quem aluga

A implicação mais direta se dá pelo Índice Geral de Preços de Mercado (IGPM), conhecido como a inflação do aluguel. O indicador, que é amplamente utilizado para reajustar contratos de apartamentos e casas, sofre influência considerável da variação cambial.

“Isso se explica por conta da composição da cesta de bens utilizada para medir o índice, que reúne não apenas os bens finais (que são demandados por consumidores), mas também o preço dos insumos necessários para a produção, que sofrem influência direta do câmbio por conta da elevada dependência do país com relação a produtos importados no geral”, indica Inhasz. O IGPM fechou em 23,14% em dezembro de 2020, a maior alta desde 2002.

Exemplo do impacto: o aluguel de um apartamento por R$ 2 mil com aniversário em janeiro de 2021, por exemplo, passaria a R$ 2.462,80. A alternativa: tentar negociar o reajuste.

…para o pão

Em 2020, alimentos tiveram alta de 14,09%, o maior aumento desde 2002. A variação de preços é medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), publicado mensalmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com foco nos efeitos nos consumidores com renda de entre 1 e 40 salários mínimos.

Com o real em baixa, produtores de alimentos preferem exportar e itens podem faltar nas prateleiras locais, aumentando seu preço

Com o dólar em alta e o real em baixa, produtores de alimentos muitas vezes preferem exportar, em vez de vender dentro do Brasil. Se um produto foi mais vendido para fora, faz falta nas prateleiras brasileiras; se um item tão básico para a dieta brasileira quanto o arroz estiver em falta, os preços sobem – no caso do agulhinha, mais de 70% o quilo.

Exemplo do impacto: o valor de uma cesta básica (que inclui itens como arroz, feijão, farinha, frutas, café, leite e pão) na cidade de São Paulo subiu de R$ 490,36, em 2019, para R$ 631,46, em 2020, segundo a Pesquisa Nacional de Preços de Alimentos, do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), divulgada dia 11 de janeiro. A alternativa: encurtar a distância, comprar diretamente do pequeno produtor e apostar no consumo consciente, com diversidade e sustentabilidade.

…e para o ganha-pão

Em 2021, a equação para equilibrar finanças pessoais e arcar com os impactos dos altos e baixos do real pode depender de uma série de números: de um lado, a atualização do salário mínimo para R$ 1.100; de outro, o fim do auxílio emergencial, projeções de alta de desemprego de 17%, recordes de desigualdade de renda, salários baixos e informalidade alta.

“Com a perspectiva de vacinação cada vez mais perto, países como o Brasil tornaram-se de novo atrativos. Isso pode sim fazer com que tenhamos a partir de agora cada vez mais apostas, elevando a entrada de dólares e reduzindo a taxa de câmbio, valorizando a moeda doméstica”, diz Inhasz. “Parte significativa dessa atratividade de dólares na economia também depende de o país ajustar suas contas, fazendo reformas e criando um ambiente propício aos investimentos”, afirma.

Se o saldo da pandemia mudou o perfil de renda e de consumo dos brasileiros, a aposta é que a esperada vacina contra covid-19 possa mudar os ventos rumo à retomada econômica, injetando novo gás para recuperar renda e empregos no país. Se assim será, são outros quinhentos.