Morar numa casa ou numa quitinete? No centro ou no interior? Questões para refletir sobre o lar pós-pandemia — Gama Revista
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Semana

Questões para repensar nossa forma de morar

Meses em isolamento trazem a casa para o centro das atenções e provocam questionamentos sobre estilo de vida e paradigmas arquitetônicos

Mariana Payno 19 de Julho de 2020
© Talita Hoffmann

Questões para repensar nossa forma de morar

Meses em isolamento trazem a casa para o centro das atenções e provocam questionamentos sobre estilo de vida e paradigmas arquitetônicos

Mariana Payno 19 de Julho de 2020

“Meu quintal é maior do que o mundo”, diz um dos versos mais célebres do poeta brasileiro Manoel de Barros. Para grande parte das pessoas, a frase do poema “O Apanhador de Desperdícios”, do livro “Memórias Inventadas” (Alfaguara, 2018), traduz bem o sentimento da vida quarentenada: durante meses a fio, sem poder sair senão para atividades essenciais, a casa se transformou no grande centro da rotina. De mero dormitório expandido, passou a abrigar também os momentos de trabalho, de estudo e de lazer — às vezes divididos intensamente com outros habitantes.

Embora muitos lugares já tenham adotado a reabertura, possibilitando uma retomada do cotidiano fora do ambiente doméstico, bastante gente ainda está em casa, seja por não considerar as saídas seguras, pela continuidade do home office — que para muitas empresas não vai acabar tão cedo —, ou para cuidar das crianças que não voltaram para as escolas. Ao que tudo indica, o protagonismo das casas ainda levará um tempo para esmorecer. “Mesmo num momento em que aparentemente vamos poder circular mais por outros espaços, a impressão é que a casa vai continuar sendo o lugar mais predominante para estarmos”, avalia Heitor Frugoli, professor e pesquisador em Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo.

Voltamos, então, os olhares para o lado de dentro das paredes e, nesse processo, passamos a questionar aspectos do ato de morar. Pontos-chave como espaço, luz natural, privacidade e proximidade com a natureza ressurgem com novos sentidos quando refletimos se as casas realmente podem nos acolher por tanto tempo e para tantas atividades. “Não acho que a pandemia é a causa dessas mudanças de paradigma. Já notávamos uma transformação que, de certa forma, foi potencializada”, defende o arquiteto Danilo Terra.

Difícil saber se as questões que despontam neste momento criarão tendências definitivas mas, na urgência destes dias de exceção, eis alguns pontos para ficarmos atentos sobre nossa forma de habitar as casas:

Vale a pena viver na cidade grande?

Por que encarar os preços e os riscos de uma grande cidade quando praticamente tudo o que faz dela atraente entra em suspensão ou se torna perigoso? Durante meses, parques, clubes, cinemas e restaurantes se foram, mas o aluguel caro, os apartamentos pequenos e a maior taxa de contágio na pandemia ficaram. Além disso, com a maioria das empresas adotando o home office, para muita gente deixou de ser necessário estar nesses lugares para conseguir trabalhar e ganhar dinheiro.

Longe dos metros quadrados supervalorizados das capitais, é possível morar em casas maiores e com mais qualidade de vida

Metrópoles como São Paulo e Nova York e populosos centros urbanos de países como a Índia e o Peru testemunham a fuga de muitos de seus moradores — sobretudo os de classes mais altas, que podem arcar com a mudança — para as cidades do interior, onde o dia a dia é mais tranquilo, mais barato e mais espaçoso. Longe dos metros quadrados supervalorizados das capitais, é possível morar em casas maiores e com mais qualidade de vida.

“As modalidades de isolamento [nas cidades grandes e pequenas] são diferentes, porque uma coisa é você estar dentro de um apartamento em que a varanda se torna a única ponte para ver alguma coisa do mundo; outra é ter a possibilidade de sair [para o quintal] na casa, se movimentar de outro jeito. São formas diferentes de se relacionar com a realidade externa”, observa Frugoli. Em especial para aqueles que não têm perspectiva de voltar ao trabalho presencial, pode ser interessante refletir se viver nas metrópoles realmente vale a pena.

Precisamos de mais espaço?

Às vezes sim, e é por isso que a vida no interior tem atraído tantas pessoas. Quando passamos a maior parte do dia dentro de casa, o minimalismo e o movimento tiny house, partes de uma mentalidade de “menos é mais” que se popularizou na última década, perdem o apelo da liberdade que pregavam. Ao contrário: essa tendência de morar com poucas coisas em lugares supercompactos — filosofia que o mercado imobiliário rapidamente aproveitou nas grandes cidades, onde a densidade populacional é cada vez maior e as famílias cada vez menores — pode ser aprisionadora. “Começou a perder o sentido morar em um apartamento minúsculo que você antes usava só para dormir e agora tem que fazer todas as coisas: cozinhar, comer, armazenar. Precisamos de mais espaço para isso”, explica a arquiteta Fernanda Sakano.

Surgiram muitas questões em relação à divisão de espaço e a organização de rotinas com dinâmicas diferentes. A casa muitas vezes não acomoda todas essas atividades

Ter um cômodo ou um cantinho para trabalhar em paz enquanto os filhos assistem a aulas online, desfrutar de uma pequena área externa e até poder isolar alguns membros da família (pela segurança dos idosos, por exemplo) se tornaram preocupações correntes. “Surgiram muitas questões em relação à divisão de espaço e a organização de rotinas com dinâmicas diferentes. A casa muitas vezes não acomoda todas essas atividades”, diz Denise Dantas, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e uma das responsáveis pela iniciativa Design for Emergency, criada para investigar as angústias deste momento e pensar em soluções viáveis.

Buscar um lugar muito grande, porém, pode ser um tiro que sai pela culatra. Afinal, quanto mais cômodos, mais cantos para limpar — outra aflição latente nestes tempos. “O padrão de sobrado com quatro suítes, que era um paradigma do mercado, é substituído por uma casa térrea, com menos quartos. Estamos esquecendo os padrões de consumo e olhando para o que funciona melhor na rotina”, comenta Pedro Tuma, arquiteto e colega de Terra e Sakano no escritório Terra e Tuma.

E as paredes, têm que voltar?

Outra faceta da estética minimalista supervalorizada nas últimas décadas, o conceito de espaço aberto vinha transformando a casa dos sonhos em um grande contínuo, sem muitas divisões entre os cômodos. Quando todas as atividades diárias de uma família acontecem simultaneamente e sob o mesmo teto, no entanto, esse modelo parece menos útil. “Uma das principais questões que tenho percebido é a busca pelo silêncio. Acho que as pessoas têm procurado maneiras de se organizar e fazer alterações que melhorem a privacidade e o ruído”, avalia Dantas.

Não são raras as ocasiões em que precisamos, ironicamente, de um pouco de isolamento dentro do convívio doméstico intenso

Entre reuniões em home office, lives mil e terapia online, não são raras as ocasiões em que queremos ou precisamos, ironicamente, de um pouco de isolamento dentro da dinâmica de convívio doméstico intenso — é quando uma parede a mais aqui e outra ali cairiam bem. Claro que não é fácil subir um bloco de concreto no meio da sala, o que também pode parecer uma decisão demasiado drástica para uma situação que, apesar de se estender mais do que gostaríamos, ainda promete ser temporária.

Por isso, devemos tender a pensar em espaços mais adaptáveis a partir de agora. “Se você tem um cômodo grande, pode ter uma parede móvel, que não é tão complicada de instalar e nem tão perene. Talvez você não queira quartos fechados e minúsculos, mas espaços flexíveis”, explica Dantas.

Devemos ser mais sustentáveis?

As adaptações também passam pela questão inevitável da sustentabilidade — palavra-chave que vem sendo banalizada, apropriada pelo mercado imobiliário e explorada na arquitetura ao longo das últimas décadas. Muito já se debateu sobre como a crise do novo coronavírus escancara as questões climáticas e ambientais, urgentes já há uns bons anos, e passando mais tempo em casa algumas pessoas perceberam como esses problemas surgem na esfera doméstica.

Seja em relação ao consumo de energia ou à quantidade de lixo produzido, muita gente despertou para uma maior consciência sobre o assunto. O que significa ponderar, daqui para frente, que tipo de transformações trazer ao morar nesse sentido.

Ter uma casa sustentável não se trata apenas de equipá-la para isso

Para os arquitetos do Terra e Tuma, ter uma casa sustentável não se trata apenas de equipá-la para isso. “Os equipamentos devem vir para agregar e não para corrigir algo que a própria arquitetura pode ter gerado”, diz Danilo Terra. Painéis solares, sistemas de reuso de água e composteiras orgânicas, por exemplo, fazem mais sentido como parte de um bom projeto arquitetônico. “Não é só o equipamento que torna a casa sustentável, é a boa iluminação, a boa ventilação, usar o terreno de maneira inteligente”, explica Pedro Tuma.

Isso tudo, claro, passa por uma mudança de atitude e por um olhar cuidadoso tanto dos profissionais que projetam as casas quanto dos moradores. “É uma forma de todos nós enxergarmos a nossa vida em sociedade. Tem a ver com algo muito mais amplo, uma noção de coletivo”, afirma Terra.

Quanto do mundo cabe aqui?

Todas essas questões de flexibilidade, tamanho e funcionalidade dos espaços ganharam protagonismo quando o trabalho, a academia, o boteco, o restaurante e até a natureza vieram parar dentro da nossa sala durante os meses de confinamento. Passamos a valorizar mais as plantas, a luz natural, a ventilação, aquela varanda pequena que nunca usávamos. “Essa ideia de trazer o mundo para dentro é quase poética e tem a ver com a sensação de bem-estar”, diz Fernanda Sakano. Impedidos de sair, tentamos encher a casa com a lembrança de que a vida lá fora ainda existe, porque isso cria uma espécie de conforto.

Mesmo com a retomada gradativa das saídas e das atividades externas, bastante gente ainda continua em casa e muitos talvez tenham despertado para essas prioridades de maneira mais duradoura. “A casa começa a acumular dimensões que antes eram partilhadas fora desse espaço e vai ganhando muito mais densidade e práticas que em outros momentos”, avalia Heitor Frugoli.

Impedidos de sair, tentamos encher a casa com a lembrança de que a vida lá fora ainda existe, porque isso cria uma espécie de conforto

Ao nos depararmos com a realidade de passar longos períodos sem poder sair de casa, mudamos nosso olhar sobre ela, fazendo surgir também um entendimento sobre a ressignificação dos espaços: o quarto que vira escritório, a sala que se transforma em box de treino, o balcão da cozinha que faz as vezes de bar. “A construção é perene, o que já foi construído já foi construído. Mas podemos adequar o design, os móveis, mudar a situação da casa para uma nova forma de habitar”, diz Denise Dantas.

Até porque esse lugar em que passamos boa parte do tempo é também parte do que o resto do mundo saberá sobre nós. “Vamos jogar a bagunça para debaixo da câmera e reorganizar os espaços para achar aquele lugar mais confortável, silencioso, onde a internet pega melhor e a luz é ok”, afirma a professora da FAU. No fim, observa ela, nosso espaço privado se tornou um tanto público, de modo que “a casa vira um cenário que representa quem você é”.