Amyr Klink: “Ser condutor é uma das expressões mais fortes do conceito de liberdade” — Gama Revista
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Veridiana Scarpelli

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Conversas

'Ser condutor é uma das expressões mais fortes do conceito de liberdade'

Para Amyr Klink, ser livre não é sair pelo mundo sem rumo, mas escolher um caminho e traçá-lo com maestria e alguns limites

Luara Calvi Anic 27 de Setembro de 2020
Veridiana Scarpelli

‘Ser condutor é uma das expressões mais fortes do conceito de liberdade’

Para Amyr Klink, ser livre não é sair pelo mundo sem rumo, mas escolher um caminho e traçá-lo com maestria e alguns limites

Luara Calvi Anic 27 de Setembro de 2020

Amyr Klink tem praticado um exercício de viver com menos, se livrar de coisas materiais que lhe dão “dor de cabeça”, como ele diz, e que atrapalham a sua liberdade. “O meu lucro foi o tempo, a paz. Eu gosto muito de paz”, diz a Gama.

Viver apenas com o essencial é algo que ele já faz em suas expedições como navegador. Mas foi com as filhas — as gêmeas Tamara e Laura e a caçula Marina Helena — que ele se deu conta de que fora do barco era também possível reduzir. “Minhas filhas não querem mais ter, é uma tendência das novas gerações. A gente está vivendo um mundo onde o grande patrimônio são as experiências.”

E isso, experiências, não lhe faltam. Registrar e compartilhar o que vive é algo que Klynk vem fazendo desde 1985, quando lançou o best-seller “Cem Dias entre o Céu e o Mar” (Companhia das Letras, 2005), um relato sobre a primeira travessia do Atlântico Sul da história, que ele fez aos 29 anos, em um barco a remo.

Com a pandemia do novo coronavírus, no entanto, suas histórias ficaram mais restritas — ele não tem saído muito de sua casa e escritório, ambos no bairro do Pacaembu, em São Paulo. Mas aos 65 anos, segue dando palestras online e escrevendo em diários. Para Klynk, registrar feitos é quase tão importante quanto vivenciá-los. “Todo mundo tem uma história especial. Mas a gente só percebe registrando.”

  • G |A vida como velejador costuma ser sinônimo de liberdade. Faz sentido para você essa associação?

    Amyr Klink |

    Gosto muito do que faço, não o fato de viajar para lugares que eu posso escolher, mas gosto da experiência de ser o condutor em todos os sentidos, não só do meio, mas do processo todo. Escolher o tipo da embarcação, fabricá-la e depois comandar. É um processo muito trabalhoso, muito burocrático, cheio de dificuldades de vários tipos, mas é muito gratificante quando você conclui um projeto depois de anos. E acho que essa experiência de ser condutor e não passageiro é uma das expressões mais fortes do conceito de liberdade.

  • G |Você acha que planejamento é essencial para se ter liberdade?

    AK |

    Acho que não é só isso. Você só sente o gosto da liberdade quando tem limites. Se não tem limites de nenhuma espécie, se faz o que quer na hora que quer — o que pode parecer uma experiência de liberdade, na verdade — faz você ficar a mercê do vazio. Eu tive essa experiência na prática em várias situações. Quando fiz a minha primeira travessia lá no barquinho a remo, depois que engatei na Corrente de Benguela [corrente oceânica do Atlântico Sul] eu sabia que ia chegar do outro lado. E aí eu podia ficar o dia inteiro enrolando, não fazer nada. Eu falei “agora eu sou livre, posso fazer o que eu quiser”, e foi o pior período da viagem porque o tempo não passava, comecei a brigar com o tempo.

  • G |Foi uma liberdade ociosa.

    AK |

    É. E essa ociosidade, essa falta de propósito, de um objetivo, de quantificar o que você faz, deixa a gente perdido. E aí eu estabeleci um horário de trabalho, brinco até que promulguei uma legislação trabalhista muito rígida (risos). A partir daí, o clima da viagem mudou.

  • G |Como era essa sua CLT particular?

    AK |

    Coloquei um limite máximo de dez horas de trabalho líquido, então eu pegava de manhã, fazia uma hora e 20 de trabalho ininterrupto no remo, independentemente do mar. Aí fazia uma pausa de 40 minutos para um café bem reforçado. Depois, para cada hora eu tinha um número de minutos de parada obrigatória. E estabeleci também um limite máximo de hora extra, digamos. Não importava o tempo, mesmo se tivesse um dia maravilhoso, mar perfeito. Porque no começo eu estava com muito medo de ser lançado de volta para a África [ele navegou da Nigéria ao Brasil] e cheguei a remar 16, 17 horas por dia, mas era contraproducente porque no dia seguinte eu estava moído e o rendimento ia caindo, e psicologicamente ia caindo também. Eu pensava “nossa, fiz dois dias 14 horas, hoje não vou fazer nada”.

  • G |Você usou esse método outras vezes?

    AK |

    Sim. Virou um procedimento que a gente adota em todos os barcos. Ano passado, fiz três viagens para a Antártida. Nós fomos em cinco pessoas. Além de mim, dois caras eram experientes, e dois de nenhuma experiência. Foi interessante eles perceberem que essa escala de horários que a gente seguiu rigorosamente beneficia todo mundo, ninguém fica cansado, todo mundo alterna. Eu alterno todos os turnos, mesmo o comando e as tarefas específicas, por exemplo limpeza, cozinha, lavar louça, manutenção mecânica. Com isso, um passa a valorizar muito mais o trabalho do outro. Todas as tarefas têm sua importância.

  • G |Você tem falado nas palestras que não quer mais nada material. Poderia falar um pouco desse projeto?

    AK |

    Tem muito a ver com essa questão que você mencionou de experienciar a liberdade. E a gente, ao longo da vida, vai acumulando coisas. Tenho origem libanesa e sou de uma geração e formação de ter que ser um homem bem sucedido, dono de empresas, de aviões. Culturalmente, os imigrantes do Líbano só retornam quando tiverem feito a América. E eu já passei por muitas dificuldades, meu pai deixou muita terra e também muita dívida. Gostaria de ter começado mais cedo a viajar, mas passei um período muito longo, mais de década, pagando dívidas, tentando sanar financeiramente, burocraticamente, coisas que não eram minhas. E aí chegou uma hora que eu e Marina [klynk, fotógrafa e companheira] começamos a liquidar coisas, aos poucos vamos nos desvencilhar de tudo. Deixei de fazer negócios muito bons falando em termos financeiros, mas o meu lucro foi o tempo, a paz. Eu gosto muito de paz.

  • G |É quase que tirar do cérebro essas preocupações.

    AK |

    É, exatamente. Eu tenho um carro ainda, mas o nosso plano é nem carro ter. Em São Paulo eu me transporto de transporte público ou de motinho. Além disso, o tamanho da nossa pobreza [no Brasil] é apavorante. Quando vê um cara andando numa Ferrari amarela, num país onde 50% da população não tem saneamento é uma ofensa. Agora estou namorando a história das bikes elétricas.

  • G |De que maneira?

    AK |

    Tenho uma bicicleta que parece pura, mas ela tem um auxílio elétrico incrivelmente discreto, você jura que é uma bicicleta normal. A roda é um pouco fininha, mas ela é uma forma incrível de transporte. Tem dificuldades porque aonde você vai não tem lugar para parar com segurança, essas coisas. Mas nisso eu acho que a pandemia vai trazer uma contribuição. Com esse número de entregadores hoje por aplicativo eles têm o mesmo problema: onde deixa o veículo na hora de fazer entrega?

  • G |Nestes tempos de pandemia muita gente parece querer mudar a vida de alguma maneira. Com base na sua experiência, por onde começar um novo projeto?

    AK |

    Olhar para as novas gerações. Essa questão que eu falei do desprendimento é uma tendência delas. Não querem mais ter, querem usar melhor as coisas. Eu sei que para as gerações anteriores é difícil, mas é um exercício que tem que fazer. A gente tinha muito medo de errar, de não ter sucesso, de quebrar. As novas gerações não têm esses medos. Se não der certo muda, começa de novo, tenta.

  • G |E o que suas filhas te ensinam desse novo mundo?

    AK |

    Elas são muito abertas para isso, não querem ganhar uma casa, uma moto, uma bicicleta. Não é esse o desejo delas. O desejo delas é ter mobilidade, ter moradia que não encha a paciência, que seja fácil de cuidar, que não dê trabalho. Eu já tinha várias razões para querer me livrar de tudo que dá dor de cabeça. Mas foi com elas que fui percebendo, enquanto convivia com os amigos delas também, que, caramba, não tem sentido. A gente precisa viver de uma maneira mais simples e mais autêntica. E essa questão da autenticidade é a grande diferença.

  • G |Em que sentido?

    AK |

    A gente está vivendo, e é por causa dessa geração, um mundo onde o grande patrimônio são as experiências. E as minhas filhas entenderam isso. Eu sempre contei muita história em casa e os pais das coleguinhas delas contavam histórias que iam lendo de um livro. E elas achavam que eu inventava as minhas. Um dia uma delas falou uma coisa engraçada: “Papai, mas então era tudo verdade!” (risos). Elas entenderam que era muito importante não simplesmente herdar as histórias dos pais, mas fazer a sua própria história. Minha mulher foi muito perspicaz nesse sentido, de ensiná-las a fazer a própria história. As meninas queriam viajar com o pai e a Marina falou que tinha uma condição: elas só iriam se preenchessem um diário. E isso ficou. Elas foram pegando gosto.

  • G |E qual a importância dessa prática, na sua opinião?

    AK |

    É que você começa a construir uma espécie de ancestralidade. Não parece importante o que aconteceu ontem, mas daqui a dois anos você vai falar “nossa, a gente viveu uma experiência inédita na história!”. Eu tenho aqui um cantinho da biblioteca com livros sem linhas e com uma capa de couro que eu mandei fazer. São livros de diário. Quando era novo, na primeira viagem que fiz fora do Brasil, reparei que as escolas e as crianças que viajavam em trens na Europa, na Ásia, todas tinham o hábito de escrever um diário.

  • G |Você acha que todo mundo deveria ter um diário?

    AK |

    Todo mundo tem uma história especial. Não existe não ter. Você pode morar na pior casa de Paraisópolis, trabalhar no banco mais chato do mundo como caixa por 30 anos e você vai ter uma história única. Mas a gente só percebe isso registrando. E eu sonho muito. E com essa história da pandemia, eu nunca sonhei tanto. Gosto de acordar a cada 40 minutos, e cada vez que dou essa acordada entra um sonho novo. E a Marina começou a anotar os sonhos, os meus. E ela me obriga a desenhar os sonhos, e é difícil! Como é que eu vou desenhar um mergulho num túnel, não sei desenhar isso. E é engraçado porque quando você olha um desenho de sei lá, cinco meses atrás, nossa senhora!

  • G |Você ainda acorda de 40 em 40 minutos?

    AK |

    Eu acostumei a dormir em pedaços. Como eu durmo muito fácil, em dez segundos eu pego no sono de novo. Na verdade, sozinho [no barco] o ideal é acordar pelo menos a cada hora.

  • G |Você cresceu com uma porta de entrada para o mundo ali na sua frente, o Oceano Atlântico. O que te fez perceber essa oportunidade?

    AK |

    Meu pai era um cara que morou em muitos lugares do mundo e minha mãe também. Eles se conheceram no Brasil e se apaixonaram pelo país. E eu tive o privilégio de receber uma educação muito aberta. Meu pai era um cara autoritário, complicado, violento, mas era extremamente inteligente e, de certa maneira, respeitava muito as diferenças. Ele era tolerante, apesar da índole violenta dele, uma coisa engraçada. A primeira vez que vi um barquinho enferrujado com um casalzinho sem dinheiro, sem nada, chegando da Europa e indo para o Japão eu pensei “nossa senhora! Mas quanto dinheiro vocês têm para fazer isso?”, e eles respondiam que nada, nenhum dinheiro. Eles disseram que colecionavam conchas, vendiam as conchas, gastavam uns 600 dólares por mês. Que ganhavam dinheiro umas duas vezes por ano, se desse, e se não desse eles pescavam, caçavam. E esse casal acabou ficando vários meses em Paraty. E aí eu me interessei muito por isso, sempre gostei muito de ler, tenho uma coleção grande de livros de viagem…. E aos poucos percebi, em Paraty, que tinha uma baita oportunidade ali.