Viviane Mosé: 'A vida é sinônimo de mudança, não há nada fixo' — Gama Revista
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Divulgação/Guilherme Falcão

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Conversas

Viviane Mosé: 'Sejamos jovens; façamos a vida agora'

Filósofa, poeta e psicanalista fala a Gama sobre o intenso momento de transformação que vivemos e sobre como temos que aprender a ‘surfar o tsunami’

Isabelle Moreira Lima 21 de Fevereiro de 2021

Viviane Mosé: ‘Sejamos jovens; façamos a vida agora’

Isabelle Moreira Lima 21 de Fevereiro de 2021
Divulgação/Guilherme Falcão

Filósofa, poeta e psicanalista fala a Gama sobre o intenso momento de transformação que vivemos e sobre como temos que aprender a ‘surfar o tsunami’

Estamos em meio a um turbilhão. Se parece que estamos em pleno afogamento por um tsunami sem fim é porque ainda não entendemos que é o momento de erguer um pouco a cabeça, botar o nariz para fora e respirar. Traduzindo a imagem para os acontecimentos do último ano, a pandemia do novo coronavírus, as transformações sociais e o momento político abrem espaço para atuarmos de forma diferente. Não só é possível mudar como a mudança já está acontecendo, afirma Viviane Mosé, filósofa, poeta, psicóloga e psicanalista e autora de livros como “A Espécie que Sabe: Do Homo Sapiens à crise da razão” (Vozes, 2019) e “Nietzch Hoje” (Vozes Nobilis 2018).

Em entrevista a Gama, a mestre e doutora em filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, quebrou um jejum de internet para falar sobre a dualidade desse período de transformação que o Brasil e o mundo vivem. Há drama e há esperança. Ao mesmo tempo em que soa otimista, ao dizer que acredita na sociedade em rede, no poder de realização dos jovens, na beleza do ser humano; fala do caos e da opressão promovida por quem está no poder.

Aos 57 anos, Viviane Mosé vê ganhos nas perdas, perdas nos ganhos e fala sobre o poder engrandecedor do sofrimento, no dia em que assinaria seu divórcio de um feliz casamento de seis anos. “O amor na maturidade é uma coisa linda”, afirma ela, que ficou mais conhecida por traduzir conceitos da filosofia em programas da TV Globo, como o “Fantástico” e o “Encontro com Fátima” e por seus cursos que têm como alunos celebridades, como as atrizes Letícia Sabatella e Drica Moraes. E diz que por isso mesmo sua mensagem de incentivo para abraçar a mudança é mais forte: “Falo da beleza da transformação num dia em que estou na pior”. Leia abaixo a entrevista completa.

Nós deveríamos ter aula de andar em cordas bambas na escola, aprender a lidar com a imprevisibilidade

  • G |Vivemos tempos de mudanças constantes, mais ainda com a pandemia. Como enfrentar as mudanças difíceis e também aproveitá-las da melhor maneira possível?

    Viviane Mosé |

    A vida é sinônimo de mudança, não há nada fixo, a não ser naquilo que a gente cria como civilização. A natureza é só mudança, uma pedra não é fixa, ela está derretendo, se desmanchando, mas o faz tão lentamente que os meus olhos, que duram tão pouco, não conseguem ver. A sociedade deveria se especializar na mudança, mas ela foca na verdade, que serve para diminuir pessoas, para oprimir. Isso é uma relação de poder e eu estou falando de Michel Foucault, de Nietzsche. O coronavírus é uma produção de uma natureza destruída, desmatada. A humanidade pode ser extinta se não construir com a natureza uma relação de continuidade. Mas vamos ser extintos? Não, porque nós somos sofisticados e vamos nos readaptar a esse processo entendendo que só há mudança. Nós deveríamos ter aula de andar em cordas bambas na escola, aprender a lidar com a imprevisibilidade, mas nos tornamos toupeiras entre o sim e o não, entre o bem e o mal. A questão de gênero hoje é que define isso muito bem: não tem homem e mulher, isso é uma invenção social. Há infinitas possibilidades de existir misturando masculino e feminino e ninguém tem que impor isso socialmente, isso é da natureza.

  • G |Você fala que nada se parece mais com um prédio em ruínas do que um prédio em construção. Nós sairemos com o prédio em ruínas dessa pandemia. Como vai ser possível construir? E o que tem que ser diferente?

    VM |

    Ele já está sendo construído diferente com a nossa dor. Sobreviverá no mundo novo quem sabe colaborar, tem consciência da dor de existir e sabe que felicidade só existe na propagando de televisão. Você pode buscar alegria, bem-estar, bem-viver. A arte, a vida, o compartilhamento, o amor, os amigos, tudo isso é muito possível, mas felicidade é uma ideia que não se deve vender, porque as pessoas dão suas vidas para ganhar dinheiro para comprar essa felicidade. É ela que sustenta o consumo. Temos que amadurecer nessa pandemia, que suspendeu tudo e disse: mudem rápido. Já há uma nova ordem nascendo e o mundo virtual nos sustenta, evita o caos. Já tem um novo prédio, o mundo que está nascendo em torno dessa virtualidade, mas ele precisa de um novo humano. A única maneira de sobreviver com 7 bilhões de pessoas no mundo é transformando essa sociedade em sustentável.

  • G |Você também diz que “o ganho nem sempre é alegria e a perda nem sempre é tristeza”. E a mudança, que todo mundo em algum momento almeja na vida, nem sempre é positiva também, mas a gente ainda assim sonha em mudar. Por quê?

    VM |

    Eu acabo de me separar de um casamento de seis anos que foi a coisa mais feliz que eu já vivi na minha vida. Quando ele acaba é a dor mais insuportável que alguém pode sentir. Quem não tem coragem de viver grandes dores nunca vai experimentar imensas alegrias. Então a vida é dos corajosos, dos ousados. Mas ela se tornou valor dos medíocres. Ser igual a todo mundo se tornou um valor, vivemos uma guerra de valores. Muitas vezes uma dor faz crescer. Da mesma forma, o ganho pode nos destruir. Às vezes uma pessoa ganha no Big Brother e destrói sua vida. Não estou falando mal do Big Brother, mas quando uma pessoa fica famosa muito rápido, ganha dinheiro, mas essa pessoa muitas vezes se mata, não só suicidando, mas se drogando, é muito rápido. Então o que é realmente um ganho?

  • G |E as mudanças internas, por que é tão difícil? Às vezes sabemos que algo não é bom para nós mesmos, mas é difícil sair do jogo. Tem jeito? É possível mudar?

    VM |

    Quanto mais temos coragem de lidar com a dor, mais ela sopra coisas no ouvido, ela ensina. Quando você consegue vencer a dor, você ganha um arsenal interno de força e aí ninguém te derruba. Não vai acabar comigo, porque eu existo. Essa consciência de existir, essa dignidade de seguir adiante, chama-se maturidade. A humanidade e os conflitos estão exigindo que nos tornemos maduros de criança. Nesse momento que eu sofro uma dor de amor, quem cuida de mim da forma mais bela é o meu filho de 16 anos. Ele me leva um café, traz um assunto novo para falar comigo, para me alegrar, me chama para ver o cachorro brincando, me dando um abraço pelas costas ou dizendo apenas “mãe, vai ficar tudo bem”. Tem um poeminha: “Adoro quando meu filho ri de mim/ Adoro quando gargalha de coisas que fiz / Rimos juntos do grotesco que somos / Apenas humanos”. E é isso, somos humanos. Somos ninguém. Olha o que um vírus pode fazer com a gente. A humanidade precisa estar junta.

  • G |Pensando nisso, será que já houve algum tipo de mudança coletiva no Brasil nesse último ano? Será que a gente já está um pouco diferente como sociedade?

    VM |

    Isso é delicado, porque as mudanças acontecem em pessoas e pessoas não são a humanidade. A humanidade é um conceito abstrato. A humanidade dos que negam a vacina é a mesma de quem hoje está em Manaus sem oxigênio em casa. Qual o grau de humanidade de quem falsifica medicação? Humanidade e sociedade são nomes inexistentes, completamente abstratos. O que nós temos hoje no Brasil são pessoas de todas as classes sociais que estão absolutamente transformadas. Para mudar, o mundo precisa de lideranças que proponham valores diferentes.

  • G |Você sempre foi simpática à internet, como está sua relação hoje?

    VM |

    Dei uma pausa, achei que as pessoas não estavam me entendendo e não queria ouvir alguns absurdos. Mas vou voltar. Eu amo a internet, nunca falaria mal dela. Nietzsche fala sempre de rede, de hierarquia horizontalizada, de muitos eus, campos de força. Quando veio a internet, eu sabia claramente que viveríamos o caos, isso está nos meus livros mais antigos. A internet é a resposta que Nietzsche precisava, é um novo modelo de ordenação, só que entre o modelo antigo e o novo, não tem continuidade, é outra ordem. Quando entendermos e aprendermos a fazer política utilizando as novas categorias de raciocínio, a gente vai ter outra sociedade. Já temos novos anseios, novas lideranças. Há uma nova ordem e ela é jovem, ousada, corajosa, não polariza no corpo, se coloca fisicamente no lugar da transição. Todos somos trans, estamos em transição entre a vida e a morte. Quem é o novo ser humano? É o que sabe sofrer. Não precisa, porque está sofrendo, matar ninguém. Sofra em paz. Abraça teu sofrimento. Ouça Nana Caymmi, ouça mulheres que cantam sofrência. Faz parte sofrer. Sofram com alegria.

  • G |O sofrimento então é o maior motor da mudança?

    VM |

    Claro. Nós construímos shoppings, nós compramos roupas, sapatos, fazemos plástica, não queremos envelhecer só para sermos amados. O nosso medo é não ser amado, é ser rejeitado. Quando você é mandado embora do emprego não é o emprego que te importa, é ser mandado embora. Você não queria aquele casamento nem aquele amor, mas se alguém te manda embora, você fica na pior. É isso que a gente tem que aprender. Eu estou assumindo aqui nessa entrevista que eu levei um fora. Para que as pessoas entendam que eu não estou brincando quando eu estou falando isso, estou falando sério.

  • G |Pensando nas pequenas mudanças cotidianas a que nós nos submetemos no último século. Como é que a gente insere na mentalidade coletiva essas pequenas transformações?

    VM |

    Essas mudanças não são nada, as que importam são o 11 de setembro, que derrubou a imagem dos americanos no mundo; o mundo ter virado evangélico; presidentes não acreditarem no coronavírus; uma mulher poder se defender. O mundo muda o tempo inteiro, é um caos. “A questão racial ou das mulheres ou de gênero está muito radical”, as pessoas falam, mas não tem outra maneira de mudar. As grandes mudanças hoje são aquelas quando você entra no mar e você leva um caixote da onda. Hoje nós estamos levando um caixote do meio ambiente, da destruição ambiental, do suicídio entre jovens e crianças, que é o que mais cresce no mundo. Vivemos hoje um turbilhão, tudo desaba na nossa cabeça: a lei, o Estado, a saúde, nós mesmos. O que nós estamos precisando é botar o nariz para fora e respirar. Aprender a surfar essa onda.

  • G |É possível mudar na política? Você acredita na mudança da política?

    VM |

    Claro que acredito. A gente nunca passou por esse inferno na história do Brasil, um presidente que nega instituições democráticas, que faz oficialmente campanha para acabar com o Supremo Tribunal Federal, que é a única instância acima dele. Então nós temos uma articulação hoje antidemocrática inacreditável. Nós temos o vínculo do governo com a bancada da igreja de um modo manipulador da população que é muito triste, tem a bancada da bala. O Brasil está hoje vinculado também ao narcotráfico, caminhando para um regime autoritário narco-militar. A situação do Brasil é gravíssima politicamente, porque o sistema de manipulação que sustenta tudo isso se chama fake news e isso é a grande guerra. Vai passar quando conseguirmos produzir na tecnologia, por isso que eu sou fã da internet.

  • G |O que você imagina exatamente?

    VM |

    Vamos desenvolver aplicativos, modelos, para filtrar gabinetes do ódio. A própria rede vai encontrar uma maneira de se autossustentar. Vamos aprender o que é manipulação da informação, nos proteger dela e criar um outro modelo. A melhor coisa do mundo é a sociedade em rede. Ela é a única possibilidade de manutenção de uma civilização, é fazer política na rede. A maior dificuldade da política pública é o acompanhamento e a avaliação. Quantos milhões de jovens que eu conheço que querem e não sabem como atuar? Faltam os aplicativos, as políticas públicas, o governo ser mais jovem. Tem saída, mas hoje é o caos. Se tem uma coisa chamada mudança é o que vivemos hoje, não há um dia que você levante e não tenha um tsunami de algum lugar vindo na sua cabeça.

  • G |A sensação é de afogamento?

    VM |

    Sim, mas botem os narizes para fora. Queiram essa sociedade. O melhor lugar para um jovem viver é num mundo em transformação. Todo mundo quer participar de um momento histórico, pois eu estou te dando ele. Pega. Tudo que é feito agora marca o resto da humanidade. Levante a cabeça. Lute. Pela vida, pelo corpo, pela arte, pela presença, pelo amor. É isso que a gente precisa. Afeto, convivência, criação, compartilhamento de vida. Ponha o seu nariz para fora. Não desista. Podemos levar esse barco para lugares melhores.

  • G |Sua reflexão me levou ao idealismo dos jovens, que querem mudar o mundo. Mas se o mundo já está em mudança, como usar essa vontade?

    VM |

    Acredite nela. Seja você que já tem 30 anos ou é um jovem de 18. Seja você que tem 60, volte a se iludir com o mundo. Acredite no mundo, transforme-o. “Ah, você não vai mudar o mundo”, vai sim! Eu mudei o meu mundo e a minha época e continuo mudando. Acabei de me separar de uma mulher com quem fui casada seis anos, após ter sido casada a vida inteira com homens. Eu não tenho medo de ousar, de buscar a alegria e o bem-viver, mas isso implica em dores. Estou chamando as pessoas para serem jovens e não falar que os jovens são iludidos. Sejamos jovens, façamos agora a vida. A vida é o agora. A gente só tem esse dia, esse momento. Isso é vida. O resto é civilização.