Ensino domiciliar: avanço ou retrocesso? — Gama Revista
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Ensino domiciliar: avanço ou retrocesso?

Estudiosos do tema avaliam os problemas, benefícios e a relevância do chamado homeschooling, cuja aprovação está na mira do governo federal

Leonardo Neiva 08 de Março de 2021

Uma família com seis filhos vive numa floresta, quase totalmente afastada da civilização. Além de noções de sobrevivência, filosofia e conhecimentos avançados em ciências exatas e linguística, os pais tomam para si a tarefa de educar os filhos para que tenham um pensamento crítico e independente. Quando confrontado por um deles sobre o porquê de não frequentarem a escola a exemplo de outras “crianças normais”, o pai responde: “Você fala seis línguas. Sabe matemática avançada e física teórica. Que diabos essas pessoas vão conseguir te ensinar?”

Ainda que sejam vistos como uma família excêntrica ao longo de todo o filme “Capitão Fantástico” (2016), de onde o enredo dessa introdução foi retirado, a prática do homeschooling, ou ensino domiciliar, hoje é legalizada em mais de 60 países. Entre eles, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Reino Unido e boa parte da Europa. Só nos EUA, são mais de 1,8 milhões de estudantes da modalidade, segundo dados do Centro Nacional para Estatísticas da Educação.

A maior parte dos pais opta pela modalidade por querer uma educação mais personalizada, com o intuito de desenvolver os parâmetros naturais da criança

No Brasil, a prática tem sido debatida há tempos, mas voltou a ganhar os holofotes no início de março por integrar uma lista de 35 prioridades do governo enviadas pelo presidente Bolsonaro ao Congresso — e a única delas relacionada à educação. A situação do ensino domiciliar no país hoje é complexa e fragmentada. Embora tenha sido reconhecido como constitucional pelo STF em 2018, ele ainda carece de regulamentação na maior parte do território. O que significa que, na prática, não está liberado.

Porém, há sim algumas exceções. Capitais como Vitória (ES) e o Distrito Federal — que sancionou o ensino domiciliar no final de 2020 — já regulamentaram a prática. No Rio de Janeiro, o vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente, apresentou também em fevereiro um projeto de lei para legalizar o homeschooling na cidade.

No momento, o debate em torno do tema, que perpassa também opiniões políticas e sociais, tem oposto duas visões bastante distintas: a dos que acreditam que a educação dos filhos deve ser uma escolha exclusiva dos pais vs. a de quem defende que hoje há questões mais relevantes para tratar na educação, além de que uma regulamentação do homeschooling poderia ter efeitos negativos para a formação de jovens no país.

Casa ou sala de aula

Há cerca de 12 anos, o consultor comercial Ricardo Dias, mais conhecido como Rick, decidiu tirar os filhos, então com 11 e 8 anos, da escola pública em que estudavam na cidade de Contagem (MG). Após greves e um problema constante de falta de professores, a família achou que conseguiria prover uma melhor educação no ambiente doméstico. A partir daí, teve início uma difícil jornada atrás de livros didáticos, textos de referência e vídeos educativos que ajudariam a transformar a casa da família numa grande sala de aula.

Segundo Rick, o grande desafio hoje é ensinar os filhos a pesquisar e estudar por eles mesmos. Nessa toada, ao ensinar, os pais não têm obrigação de saber tudo. Sua missão seria estar um passo à frente e aprender ao longo do processo. “O professor também não tem todo o conhecimento, por isso ele precisa preparar a aula”, afirma.

Um educador que nega a existência de Deus. Isso ofende alguns pais, que se sentem desrespeitados como as pessoas que têm direito de passar suas crenças aos filhos

Hoje, Rick preside a Associação Nacional de Educação Domiciliar, que reúne famílias em luta pelo direito de ensinar os filhos em casa. Seus dois filhos atualmente cursam faculdade — mesmo sem a educação formal, o desempenho no Enem pode ser usado como certificado. Ele reitera que a batalha não é contra as escolas, mas sim pela autonomia dos pais na hora de escolher. Para Rick, a pauta não deve ser vista como conservadora, mas como um direito familiar.

A maior parte dos pais opta pela modalidade por querer uma educação mais personalizada, com o intuito de desenvolver os parâmetros naturais da criança — aprender sobre temas de interesse que a escola não aborda, como aviação —, ou por considerar inadequadas as pressões sociais do ambiente escolar, diz o consultor. Outro problema muito levantado seria a qualidade do ensino.

E, por último, somente uma pequena parte o faz por medo da doutrinação política ou religiosa que seria promovida por alguns professores, afirma Rick. “Por exemplo, um educador que nega a existência de Deus. Isso ofende alguns pais, que se sentem desrespeitados como as pessoas que têm direito de passar suas crenças aos filhos.”

Olhar equivocado?

O maior problema de o governo definir a regulamentação do homeschooling como prioridade é que deixa de olhar para outras questões urgentes que poderiam impactar milhões de estudantes, como a reforma do Sistema Nacional da Educação, diz Lucas Hoogerbrugge, líder de relações governamentais da organização Todos pela Educação.

Segundo dados da Aned, existem cerca de 22 mil alunos de ensino domiciliar no Brasil, número que empalidece na comparação com os 39 milhões de jovens que estudam em escolas públicas. “Nos preocupa que o homeschooling tenha sido colocado como prioridade, em vez de outros investimentos que teriam impacto na redução das desigualdades e na qualidade do ensino, como a formação de professores, aulas em tempo integral e maiores repasses de recursos para escolas” declara Lucas.

Nos preocupa que o homeschooling tenha sido colocado como prioridade, em vez investimentos que teriam impacto na redução das desigualdades e na qualidade do ensino

O representante do Todos Pela Educação também diz que existem poucos dados sobre a eficiência do ensino domiciliar pelo mundo — e esses, por virem em sua maioria de instituições favoráveis ao setor, seriam pouco confiáveis. Ele aponta como problemas em potencial da modalidade de ensino a redução drástica dos contatos sociais na juventude, a dificuldade crônica do Estado brasileiro de gerir e monitorar os alunos e uma possível brecha para casos de violência e abuso familiar.

“Se as coisas derem certo, não sabemos se seus efeitos na educação serão positivos. Se derem errado, terá impactos negativos drásticos.”

Uma questão de responsabilidade

De acordo com o advogado, professor e especialista em direitos da criança e do adolescente Édison Andrade, a pandemia acabou acentuando a importância da participação familiar na educação dos jovens. Andrade, que tem Doutorado em educação e é autor de tese sobre o tema, diz que a educação dos filhos é sim responsabilidade dos pais, mas que muitos optam por delegá-la a terceiros por falta de tempo ou compreensão sobre o processo educativo. “Pais que apenas retiram os filhos da escola e os entregam inteiramente a si mesmos, sem acompanhamento, direção ou mesmo o ensino direto, não deveriam praticar educação desescolarizada.”

O especialista defende que, se bem planejado, o ensino domiciliar pode ser uma forma de aprendizado mais útil do que a ultrapassada escola tradicional, concebida “há cem anos num contexto da urbanização e industrialização nacional”. O modelo ideal para ele seria o de educação híbrida, dividida entre atividades com a participação dos pais e aulas com professores.

A formação proporcionada pela família é fundamental, mas não se confunde com a vasta gama de conteúdos, competências e habilidades, inclusive socioemocionais, que a escola proporciona

Édison também aponta a importância da aplicação de avaliações regulares pelo governo para medir o desempenho em disciplinas como português e matemática. Mas com uma ressalva: “o modo de avaliação deveria levar em conta novos paradigmas de aprendizado e desenvolvimento, tais como inteligência emocional, quociente de inteligência e múltiplas inteligências.”

Por outro lado, para o sociólogo José Ruy Lozano, membro da Comunidade Reinventando a Educação (Core), a experiência pandêmica pode ter até prejudicado a visão da sociedade sobre o ensino domiciliar, por expor a dificuldade de organizar uma rotina em casa, pela falta de tempo e pela indesejada intersecção entre os espaços de trabalho e lazer. Já a experiência e o conhecimento dos professores estariam sendo mais valorizados hoje. “A formação proporcionada pela família é fundamental, mas não se confunde com a educação formal e a vasta gama de conteúdos, competências e habilidades, inclusive socioemocionais, que a escola proporciona.”

Os frutos da desigualdade

A pressão pela regulamentação do ensino domiciliar, continua José, viria de um incômodo de uma parcela da sociedade com a interação entre pessoas com orifens e formas de pensar diferentes. “É fruto de uma ideologia que rejeita a dimensão pública da vida. Ideia importada dos EUA, trata-se de um braço das disputas ideológicas e das guerras culturais em torno da escola.”

Para Rick, a discussão sobre a socialização de crianças na escola está ultrapassada, já que, mesmo fora dela, os pais podem promover por eles mesmos a interação com outros jovens. A diferença é que, nessas condições, ela seria mediada de forma a impedir pressões negativas geradas pelo contato com outros jovens, cujo risco seria maior longe do olhar da família. Ele também rebate a possibilidade, levantada por críticos do ensino domiciliar, de que o modelo possa favorecer abusos. “Uma família mal estruturada socialmente, com pais abusadores ou drogados, não vai querer o homeschooling. Vão querer o filho longe, na escola, de preferência em tempo integral.”

É fruto de uma ideologia que rejeita a dimensão pública da vida. Ideia importada dos EUA, braço das disputas ideológicas e das guerras culturais em torno da escola

A professora Luciane Muniz, da Faculdade de Educação da Unicamp, que estuda o tema, esclarece que, embora alguns estudos feitos em países desenvolvidos tenham demonstrado que crianças em homeschooling têm desempenho acadêmico superior, a desigualdade social brasileira torna a questão mais complexa. Hoje a maioria dos adeptos no país pertence a uma classe média alta, com pais que têm formação acadêmica superior, condições que já favorecem resultados mais positivos. Até o momento, há poucas indicações de sua relevância social ou para famílias de baixa renda.

Segundo ela, os favoráveis ao modelo têm aproveitado o atual contexto de aumento do conservadorismo e a pandemia, com a ascensão do ensino remoto, para tentar regulamentar a prática no país. Em termos estruturais, no entanto, isso estaria longe de ser solução para os graves problemas vividos no Brasil. “Vivemos um momento de crise, sem financiamento adequado para a melhoria das escolas públicas e com um governo mais preocupado em aprovar a educação domiciliar, que está restrita a uma pequena parcela da sociedade.”