Seria o fim do cinema de rua no Brasil? — Gama Revista

Sociedade

Seria o fim do cinema de rua no Brasil?

Guilherme Falcão

Em meio à pandemia, salas de projeção sofrem com queda de faturamento e fecham para conter prejuízos

Leonardo Neiva 12 de Dezembro de 2020

Talvez a cena mais memorável de “Cinema Paradiso” seja seu final. Nele, o protagonista Totó finalmente assiste a todas as cenas de beijos tórridos, cortadas dos filmes pelo padre da cidadezinha onde passou a infância. Nenhuma sequência, no entanto, é mais desoladora do que aquela, minutos antes, em que um Totó de meia-idade visita pela última vez o cinema do título. Nas entranhas arruinadas do Paradiso, ele observa os bancos amontoados, a tela destruída e pensa ouvir os ecos de uma plateia que já não existe há décadas. Momentos depois, o prédio é demolido para dar lugar a um estacionamento. Crianças brincam entre as ruínas. “Você sabe melhor do que eu. A crise, a televisão, o videocassete… O cinema se tornou apenas uma memória”, explica o conformado ex-proprietário.

No filme, a morte de um cinema é mostrada como uma ocasião devastadora para todas as pessoas que foram tocadas por ele. Hoje, o risco é de que este se torne um evento recorrente, em meio à crise e ao fechamento de portas causados pela pandemia. No dia 13 de novembro, foi anunciado que ao menos uma dessas portas não deve reabrir. Era hora de dar adeus ao Cine Joia, antigo cinema de rua de Copacabana, repaginado há cerca de dez anos pelo empresário e cineasta Raphael Aguinaga.

Quando a gente abria a sessão, as crianças saíam correndo para ocupar as primeiras filas como se fosse uma montanha-russa

Quando a última projeção terminou e as portas se fecharam, em março, Aguinaga estava amparado por um subsídio da Prefeitura do Rio. O cinema recebia, desde outubro de 2019, um pagamento mensal para realizar sessões voltadas a alunos da rede municipal de ensino. Pouco depois, o Joia somou à conta sessões para idosos e adolescentes de abrigos da prefeitura. “O cinema é uma coisa cara no Brasil, então as classes C e D não têm contato. Quando a gente abria a sessão, as crianças saíam correndo para ocupar as primeiras filas como se fosse uma montanha-russa”, lembra Aguinaga.

A ideia era esperar o retorno das atividades para completar as 18 sessões que faltavam, de um total de 48 contratadas pelo poder público. Porém, em março, o dinheiro não chegou. O governo pretendia cancelar o contrato, sem pagar os meses restantes. “Não só tomei o cano como tive que fazer frente a essa renda. Dá um prejuízo enorme ter que encerrar sua atividade comercial de maneira abrupta.”

O pior, segundo ele, é que o cinema vinha em um de seus melhores momentos, com bastante público e prestes a firmar um contrato com uma rede de alcance nacional.

Como Rocky Balboa, vendemos caro a nossa derrota. Nosso oponente estava nocauteado, parecia que ia dar

“Como Rocky Balboa, vendemos caro a nossa derrota. Nosso oponente estava nocauteado, parecia que ia dar. Foram nove anos subindo a montanha e só seis meses no cume, mas efetivamente chegamos lá. Nosso filme se encerra com essa nota, de que sim, é possível.”

Um panorama

No último final de semana de março, pela primeira vez na história, o Brasil zerou sua bilheteria, reflexo do fechamento geral das salas de cinema. De lá para cá, os resultados do setor têm sido erráticos, com idas e vindas e retorno financeiro pouco expressivo. Enquanto se discute a sobrevivência das grandes redes — debate aquecido pelo anúncio da Warner de lançar seus grandes blockbusters direto no streaming HBO Max em 2021 —, os cinema de rua têm tido resultados tão ruins quanto os grandes conglomerados.

No Rio, o Cine Joia não é o único cinema de rua a fechar, embora seja dos poucos que o fizeram em definitivo. No início do ano, o CineCarioca Nova Brasília, primeiro instalado dentro de uma favela, no Complexo do Alemão, fechou após o fim do contrato com o exibidor. A previsão é que seja reaberto apenas em 2021. O Grupo Estação anunciou o fechamento de suas 15 salas na Zona Sul até janeiro de 2021. Cinemas como o Roxy e o Méier, da rede Kinoplex, seguiram o mesmo caminho.

Países como França, Itália e Espanha precisaram lançar subsídios milionários para cobrir parte dos prejuízos dos exibidores

O Roxy, último cinema de rua em funcionamento no bairro de Copacabana, chegou a reabrir apenas para fechar um mês depois. Em nota, a Kinoplex informa que o público do cinema é constituído principalmente por pessoas idosas, grupo de risco do coronavírus, e que ainda estão “em suas casas, aguardando a melhor hora de voltar ao cinema”. Com resultados financeiros fracos, a empresa optou por parar novamente. “Esperamos que, em breve, com a disponibilização da vacina, esse público, que tanto ama o cinema, possa retornar e viver novos momentos inesquecíveis no Roxy.”

No resto do mundo, a situação não é muito melhor. Países como França, Itália e Espanha precisaram lançar subsídios milionários para cobrir parte dos prejuízos dos exibidores. Agora, com o recrudescimento da doença e novo fechamento de salas, o quadro deve se agravar. Nos EUA, instituições e personalidades do cinema enviaram uma carta de apelo ao Congresso avisando que, caso a atual situação continue, “sessenta e nove por cento das empresas de pequeno e médio porte serão forçadas a pedir falência ou fechar permanentemente.”

Por aqui, alguns cinemas de rua vêm sobrevivendo graças ao apoio do poder público. O Olympia, em Belém (PA), o mais longevo do país com seus 108 anos, está fechado, mas em situação relativamente confortável por ser financiado pela prefeitura da cidade. É o mesmo caso do Cinema São Luiz, no Recife (PE), mantido pelo governo de Pernambuco. Em março, o cinema incluiu em sua fachada os dizeres “Cuidem-se. Em breve estaremos juntos.” Nove meses depois, as portas continuam fechadas.

Abrir ou fechar, eis a questão

Acostumado a receber mais de um milhão de espectadores num final de semana, o circuito brasileiro vem amargando números bem abaixo disso. No primeiro fim de semana de dezembro, pouco mais de 200 mil pessoas foram ao cinema, segundo dados da ComScore. Além do medo de infecção, a falta de grandes lançamentos inibe o público.

Devido aos protocolos sanitários, a capacidade está reduzida a um máximo de 40% do pré-pandemia. “O sistema é automatizado. Quando você compra o ingresso, os quatro ou cinco lugares à sua volta são bloqueados”, explica o diretor de programação do Espaço Itaú de Cinema e da Cinesala, em São Paulo, Adhemar Oliveira. Segundo ele, que acompanha a movimentação tanto em cinemais dedicados a blockbusters quanto nos de rua, a queda é generalizada e acontece de forma proporcional. “Temos menos de 10% de ocupação em cada cinema.”

Estamos todos num barco esperando para ver o que vai acontecer nessa próxima onda

Para o diretor, o cinema virou “o diabo da vez”, embora os protocolos de segurança e a garantia do distanciamento tornem a atividade mais segura do que, por exemplo, ir a um restaurante. Oliveira ainda enfrentou um problema adicional, já que as poltronas de tecido da Cinesala não se adequavam às exigências de segurança. Graças a uma ação de crowdfunding, conseguiu juntar R$ 100 mil que permitiram a reforma dos assentos e a reabertura da sala.

“Estamos todos num barco esperando para ver o que vai acontecer nessa próxima onda”, diz Oliveira, que demonstra preocupação quanto à situação do Grupo Estação, no Rio — o cinema anunciou em dezembro um novo fechamento. “O problema é que estar aberto pode ser pior do que fechar.”

Cai o pano?

São Paulo começou 2020 com uma notícia negativa mesmo antes da pandemia. Em fevereiro, o Cinearte, na Paulista, anunciou o fechamento por falta de patrocínio. Além disso, a covid-19 tornou incertas iniciativas que estavam em curso para revitalizar antigos cinemas de rua do Centro. A transformação do Cine Ipiranga em ponto dedicado ao cinema e à cultura geek, prevista para o segundo semestre, foi de certeza a dúvida num piscar de olhos. “Está tudo suspenso, nem sei dizer se vamos conseguir entregar. Não sabemos se cinemas de rua, ou os cinemas em geral, vão voltar a ser importantes”, afirma o empresário Facundo Guerra, responsável pelo empreendimento junto com o site Omelete.

Reaberto em outubro, o Petra Belas Artes deve fechar no dia 13 de dezembro. Durante os sete meses em que permaneceu parado, o cinema acumulou um prejuízo de R$ 1,6 milhão. “Um dinheiro irrecuperável, é impossível resgatar uma sessão que não aconteceu”, diz o ex-secretário da Cultura de São Paulo e diretor do Belas Artes, André Sturm. A reabertura, no entanto, também não trouxe o retorno esperado. Entre 7% e 8% do público voltaram a frequentar o cinema na comparação com 2019.

Para Sturm, parte da culpa é do poder público, que relegou os cinemas às últimas fases da reabertura, gerando um medo infundado. “A academia está cheia de gente, os bares estão lotados. As pessoas estão indo a todos os lugares, menos aos cinemas.” Ele acrescenta que os protocolos são seguidos rigidamente. Segundo ele, o ar condicionado, visto como disseminador do vírus, funciona com um sistema de renovação do ar, o que impediria a propagação.

Cinemas usam novos serviços de streaming com seu acervo para reduzir as perdas com a pandemia

Como forma de conter parte do prejuízo, o cinema ainda lançou o “cartão amigo”, que oferece diferentes possibilidades de acesso ao Belas Artes para 2021. Além disso, o Belas Artes à La Carte, serviço de streaming do cinema, ganhou adesão e tem contribuído para reduzir parte das perdas.

Sturm reforça que, mesmo que a vacina demore mais do que o previsto, não pretende jogar a toalha. “Não me dou por vencido. Se a pandemia continuar, não vamos ficar esperando a crônica de uma morte anunciada, como diria García Márquez. Faremos algo para enfrentar.”

Raphael Aguinaga também não pretende permanecer de luto por seu Cine Joia. Já tem engatilhado o projeto de um documentário sobre os dez anos que passou à frente do cinema, assim como a ideia de lançar um novo serviço de streaming. “O que vou sentir falta é de interagir com o espectador. Quando o ser humano vai a um aparelho cultural, ele busca transcender a corrida dos ratos, sublimar a realidade. Esse momento em que a pessoa entra em contato com a sua alma é muito especial.”

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