Belezas são coisas acesas por dentro — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Belezas são coisas acesas por dentro

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre o som das coisas se movendo, as guerras que pegam e as guerras que não pegam, a verdadeira praia paulistana e a experiência perfeita de cinema experimental

17 de Novembro de 2023

Belezas são coisas acesas por dentro

Jorge Mautner, 1974

No dia mais quente do ano mais quente em 125 mil anos, ouvi o mundo derreter na voz de Filipe Catto.

E ainda descobri que ela é a maior cantora do Brasil.

Ou, vá lá, ocupou o posto durante o show de ontem no Sesc Pompeia – mais Pompeia que nunca com termômetros perto de vulcânicos 37 graus.

Era o lançamento do álbum “Belezas São Coisas Acesas por Dentro”.

O título foi achado num verso de Jorge Mauter em “Lágrimas Negras”, não por acaso uma canção lançada por Gal Costa – todas as faixas do disco-homenagem vieram do repertório da baiana.

A apresentação começou aí, suave como brisa quente, apenas voz num registro agudo e guitarra dedilhada: “São poços de petróleo a luz negra dos seus olhos/ Lágrimas negras caem, saem, doem”.

Catto num longo vestido transparente de tule azul, essa cor que azuleja o dia, onde enrola os pés descalços. O cabelo cobre totalmente as costas e a maquiagem lembra o David Bowie mais andrógino.

(Ela tem falado de sua transição de gênero. Manteve o nome masculino ao lado de pronomes femininos, numa combinação não binária.)

A segunda canção, “Tigresa”, diz que tudo vai mudar. O power trio toca alto, testosterona na guitarra, baixo e bateria – os três músicos da banda firmes numa estética barbada de camiseta preta, jeans e tênis.

Esse remix de sexualidades – nem feminino e nem masculino, muito pelo contrário –, poços de petróleo capazes de fritar negacionistas climáticos e tigresa podendo mais do que o leão fez pensar em Paul B. Preciado.

O filósofo espanhol criou o conceito “petrossexorracial”. O palavrão define a economia baseada em combustíveis fósseis e a sociedade fundada numa divisão inflexível de sexo e raça.

É uma ordem caduca que derrete diante da transição planetária, enquanto insiste na polarização entre masculino e feminino, branco e preto, natureza e cultura, Sul e Norte.

Foi bonito escutar o som das coisas se movendo.

O que é uma criança? Um sossego entre dois bombardeios

Ilya Kaminsky, 2019

Como as leis, aqui no Brasil há as guerras que pegam e as que não pegam.

A guerra de Israel contra a Palestina, que deveria ser contra o Hamas, pegou.

Um mês após os ataques terroristas, continua a mobilizar passeatas, transformar jornais televisivos modorrentos em mesas redondas acaloradas e invadir conversas.

Já a guerra da Rússia contra a Ucrânia, a caminho do segundo ano, não pegou por aqui.

Por quê?

Não por falta de mortes. As melhores estimativas contam 250 mil vítimas fatais por lá, embora outras falem em até 500 mil. Estatisticamente, os 11 mil mortos palestinos e israelenses deveriam causar menos impressão.

Mas essa contabilidade funesta é abstrata e analgésica. São os vídeos amadores gravados em celulares que dão concretude e dor ao conflito.

Nossa relação com a guerra na Ucrânia é abstrata e com a guerra no Oriente Médio, concreta – crianças mortas ou adolescentes sequestradas, filmadas sem o distanciamento das câmeras profissionais, são concretas demais.

Ilya Kaminsky nasceu na Ucrânia e se exilou nos Estados Unidos em 1993. “República Surda” é um poema longo sobre a guerra numa cidade inventada – poderia ser Odessa, Cidade de Gaza ou, por que não?, Rio de Janeiro.

Num trecho chamado “Em Tempos de Paz”, o narrador lembra quando esteve num país pacífico: “Vejo os vizinhos pegarem o celular para ver um policial exigindo a carteira de motorista de um cara. Quando o cara está pegando a carteira, o policial atira. Na janela do carro. Atira. É um país pacífico”.

A guerra do Brasil contra o Brasil, quase 60 mil mortos por ano, violência linda e trigueira, também não pega por aqui.

O cidadão de bem é meio Benjamin Netanyahu: só enxerga bandido, só vê terrorista.

Se tá na Faixa de Gaza, seja a favela da Zona Norte carioca ou a original, tanto faz, tudo terra de ninguém, basta sacar o direito de autodefesa ou o excludente de ilicitude e atirar.

Pensar com delicadeza, imaginar com ferocidade

Herberto Helder, 1961

Exagero dizer que Danilo Santos de Miranda era como um Ministro da Cultura – exagero com o cargo de Ministro da Cultura, que não é tudo isso.

Ninguém fica na cadeira de ministro por 40 anos, como ele esteve à frente do Sesc São Paulo. Com exceção dos 8 anos de Francisco Weffort durante os mandatos de FHC e dos 6 anos de Gilberto Gil nos dois primeiros governos Lula, esse assento costuma ser ejetável.

Em alguns casos isso é um alívio, mas cultura exige continuidade.

Daí ser covardia comparar suas quatro décadas com passagens erráticas pela esplanada dos ministérios e visões de gestão cultural que duraram um piscar de olhos – frequentemente interrompidas pela politicagem. Isso quando o ministério não foi extinto, como no desgoverno anterior.

Sou um carioca morando em São Paulo há 29 anos – não arredondo pra 30 porque cada ano longe do Rio conta. Consigo viver por aqui sem praia, apesar da falta desgraçada do mar, porém jamais sem Sesc. Perdi a conta das centenas de vezes que entrei numa de suas unidades e saí melhor de lá.

Pra ficar na semana passada, mexi os pés no show da Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou, direto do Benin pra Pompéia, e sentei mesmerizado diante dos vídeos da performer cubana Ana Mendieta, montados em meio ao espelho d’água projetado por Lina Bo Bardi – Sesc São Paulo é como o mundo todo.

Desde 1994, vi Antunes Filho montar gregos e “As Troianas”, calcei os sapatos de cristal da Marina Abramovic, ouvi Paulinho da Viola cantar “Foi um Rio que Passou em Minha Vida” no final da pandemia e entrei no furação do BaianaSystem – Sesc São Paulo é pra o mundo todo, também.

Popular, erudito, criança, jovem, velho, clássico, hype, pobre, remediado, rico, centro, periferia, tudo e todos circulando em seus espaços, sem catraca nem área VIP.

Danilo Santos de Miranda pensou com delicadeza e imaginou com ferocidade o Brasil que a gente quer.

Não esqueças sobretudo de olhar devagar

Vasco Gato, 2003

“Ajeita o foco!”, berrou alguém.

O grito tava entalado na garganta de cada um de nós ali na plateia, mais incomodados com as imagens embaçadas que com as poltronas velhas.

Eu deveria estar na cama – mas decidi ignorar a ressaca pra ver a matinê da mostra de cinema, enfurnado numa sala escura em plena manhã ensolarada de sábado.

“Focooooo!”, esbravejou outro, irritação proporcional às vogais.

Antes que o projecionista pudesse reagir, um sabichão vociferou de volta com a arrogância de um jovem turco da “Cahiers du Cinéma”: “O filme é assim mesmo!”.

Assim mesmo? Sem foco?

Eu, míope desde criancinha, me senti no primário. Ainda incapaz de enxergar o quadro negro, era incompreendido como Antoine Doinel no filme do Truffaut: presta atenção, menino, depois reclama que não entendeu nada.

Pois não tava entendendo nada, apesar de quase nada acontecer.

Tentava me convencer de que as imagens desfocadas, com três amigos jogando conversa fora enquando passeiam por um balneário atrás de ideias pra um curta-metragem, deviam ser pura metalinguagem. Provavelmente.

O maior medo de todo cinéfilo amador me assombrava.

Não dou conta de nenhuma metáfora que vá além da sagaz aproximação entre velocidade e virilidade, em “Velozes e Furiosos 8”? Foi em vão a maratona Bergman, oito filmes em três dias, nos idos de 1989?

Meia hora mais tarde, a cerração continuava na tela. As legendas, nítidas como a primeira fileira de um teste de visão, reforçavam a tese de opção estética.

Aos poucos me rendi à recomendação do poeta português Vasco Gato, em suas “Regras do esquecimento”: “Não esqueças sobretudo de olhar devagar”.

Devagar, a história encaixou.

Foi a experiência perfeita de mostra – horário ruim, sala com jeito de cineclube, filme experimental que fica girando na sua cabeça pelo resto do dia. “Na Água”, do sul-coreano Hong Sang-Soo, ainda vai ser exibido três vezes. Recomendo.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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