O aumento de consumo de álcool na pandemia — Gama Revista
Conversas

“Não existe consumo de álcool sem risco”

A psiquiatra Ana Cecília Marques fala do aumento do consumo de álcool durante a pandemia e da dificuldade de mudar uma cultura onde se bebe cada vez mais e mais cedo

Betina Neves 22 de Fevereiro de 2022
Unsplash

Em 2022, os dias de combate nacional às drogas e ao alcoolismo vêm com um alerta especial, levando em conta os diversos estudos preocupantes que têm saído relacionando álcool e pandemia.

Um estudo coordenado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) com participação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), revelou que 42% dos entrevistados no Brasil relatou alto consumo de álcool durante o primeiro ano de covid-19 – o álcool, aliás, é a substância psicoativa com maior consumo e dependência no Brasil.

“Nesse período, o álcool entrou em muitos lugares: no manejo da ansiedade, para enfrentar os desafios de relação com a família dentro de casa e para lidar com a falta de emprego e perspectiva e o medo de pegar o vírus, por exemplo”, diz a psiquiatra Ana Cecília Marques.

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Ana Cecília Marques, coordenadora da comissão de dependência da Associação Brasileira de Psiquiatria  Arquivo pessoal

Doutora pela Unifesp, a médica atua há mais de 30 anos com questões relacionadas às drogas, e há tempos tem voz ativa na imprensa para a conscientização sobre os problemas acarretados pelo álcool na sociedade. Ela é coordenadora da comissão de dependência da Associação Brasileira de Psiquiatria e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas (ABEAD) (na qual atualmente é parte do conselho consultivo), além de atender em seu consultório em São Paulo e coordenar um projeto piloto de criação de políticas públicas para drogas no interior do estado.

O abuso contínuo de álcool está por trás de mais de 200 doenças, de obesidade a diabetes, de pressão alta a vários tipos de tumores – cerca de 85 mil mortes a cada ano são 100% atribuídas ao consumo de álcool nas Américas. E, no cenário atual, o aumento de consumo é preocupante principalmente entre as mulheres. “Elas têm bebido mais desde muito antes da pandemia “, diz. “E isso é preocupante porque, entre outras coisas, o organismo feminino é mais vulnerável aos efeitos nocivos do álcool e ainda há poucos tratamentos para alcoolismo direcionados especificamente para elas.”

Confira a seguir a entrevista que a médica concedeu a Gama.

  • G |O que é urgente discutir em relação ao combate ao alcoolismo em 2022?

    Ana Cecília Marques |

    Nossos levantamentos mostram que estamos indo de mal a pior em relação à cultura do abuso do álcool. E isso traz um monte de malefícios que todo mundo finge que não vê – aumento de violência, aumento de acidentes de trânsito, problemas nos fetos, um série de doenças. Então hoje precisamos trabalhar a prevenção, principalmente em grupos vulneráveis, como crianças, adolescentes, mulheres e idosos. E a prevenção tem que ser no micro, não adianta importar modelos de outros países ou vir de uma diretriz do governo federal para o Brasil todo, precisa ser em cada município, levando em conta as culturas locais. É um trabalho de formiguinha. A gestante precisa saber por que não pode usar álcool ou nenhuma outra droga; o comerciante precisa saber por que não pode vender bebida para menor de idade. E a prevenção tem que ser desde a primeira infância: um pai não pode pegar a cerveja do lado do leite na geladeira e começar a beber na frente do filho como se aquilo fosse um produto qualquer. É aí que começa a construção de um modelo para a criança. Na adolescência, o indivíduo começa a sofrer pressão, ser influenciado pelos pares, pelos próprios pais, pela propaganda. A prevenção precisa estar em casa, na escola, em cada cidadão, na comunidade toda.

  • G |O que falta para uma mudança de cultura efetiva em relação ao consumo de álcool?

    ACM |

    Precisa regulamentar a indústria – inclusive banindo a propaganda, como foi feito com o cigarro – e oferecer prevenção e tratamento, informando a população com todo o conhecimento que já temos. E estamos muito longe disso. Ainda se acha que o álcool melhora o funcionamento do rim, que tomar uma dose de vinho é bom para o coração. Fora o estigma sobre a pessoa que bebe demais, comumente vista como vulgar, inadequada, fraca, não há noção que aquele indivíduo pode estar doente, pode já ter adquirido o alcoolismo. E mais, os serviços especializados em tratamento ainda não oferecem as intervenções mais eficazes, falta um sistema de atenção ao usuário que se inicie antes que ele fique dependente. Culturalmente, hoje, está dez a zero para a indústria do álcool, ela vende o que ela quiser, para quem ela quiser. As armadilhas pegam os mais vulneráveis: estamos vendo cada vez mais padrões de abuso em adolescentes, principalmente meninas. E aí entram vários fatores, estamos na era digital, tem ‘Zé Delivery” [que entrega bebidas a qualquer hora], tem Uber. Em cada faixa etária, gênero e tipo de população há um fator de risco que está levando a isso.

  • G |Sabemos que a indústria do cigarro escondeu durante anos os efeitos nocivos das substâncias contidas ali. Como a indústria do álcool opera?

    ACM |

    Eles adotam múltiplas estratégias. Como, por exemplo, as campanhas de “beber com moderação”, nas quais eles empregam pesquisadores para chancelar seus materiais “didáticos” de como “beber sem problemas”. E aí contratam gente como Maurício de Souza, Anitta e até a Monja Cohen para falar por eles. É um lobo mau na pele de carneirinho, porque o que importa para eles é apenas o lucro. Para se ter uma ideia, no Brasil a cerveja ainda está registrada como produto alimentício. Então as outras bebidas só podem fazer propaganda depois das 22h na TV, mas cerveja pode passar o dia inteiro, na internet, em qualquer lugar. Fora que eles compram deputados, dão dinheiro para campanhas, a gente sabe de tudo isso.

Estamos indo de mal a pior em relação à cultura do abuso do álcool. E isso traz um monte de malefícios – aumento de violência, aumento de acidentes de trânsito, problemas nos fetos

  • G |Como tem sido a relação entre mulheres e o abuso de álcool?

    Ana Cecília Marques |

    Historicamente, problemas relacionados ao consumo de álcool são mais comuns em homens, que até hoje se apresentam como perfil de risco para abuso e maior taxa dependência. A partir da 2ª Guerra Mundial, com a entrada da mulher no mercado de trabalho, elas passaram a ser alvo de campanhas especiais para elas, o que produziu um beber precoce e muitos outros problemas. Hoje, diante de toda sobrecarga psicossocial, mais mulheres bebem com maior frequência no mês, e bebem abusando, desde a adolescência. E o alcoolismo é mais agressivo na mulher, que tem fígado, aparelho reprodutor, cérebro e sistema cardiovascular mais vulneráveis. Para aquelas que bebem diariamente, a chance de desenvolver câncer de mama é 41% maior do que naquelas que não bebem. Para piorar, entre os tratamentos oferecidos hoje, ela não se encontra, não se encaixa, porque eles foram pensados para homens. No Brasil só temos um local que oferece um tratamento direcionado para mulheres, o Promud, na USP. Além disso, a mulher doente precocemente ou dependente atinge em cascata toda a família. As consequências são incalculáveis.

  • G |Existe consumo de álcool sem risco?

    ACM |

    Não. Existe o consumo de baixo risco, recomendado pela OMS, de limite de consumo diário que corresponde a uma lata de cerveja ou uma taça de vinho ou ¼ de copo de destilados para mulheres, valendo o dobro disso para os homens. O problema é que o efeito disso depende da vulnerabilidade de cada um ao etanol, que ninguém nasce sabendo, está no genoma. E o uso contínuo do álcool pode virar alguma chave. O alcoolismo não é uma doença inata, é uma doença adquiria determinada por múltiplos fatores. Em média 16% da população se torna dependente, o que é influenciado pelo padrão de consumo, pela predisposição genética e o ambiente em que a pessoa vive. Outras pessoas podem desenvolver diabetes ou hipertensão, por exemplo. Isso é o mais difícil dessa ciência das adições, a imprevisibilidade dos fatores que estão agindo naquele momento e que podem virar alguma chave com determinada substância.

  • G |Quando devemos começar a nos preocupar com nosso próprio consumo ou das pessoas que estão ao nosso redor?

    ACM |

    Recentemente a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 11) mudou o número de critérios que leva ao diagnóstico de dependência leve, que seria o primeiro grau do alcoolismo. Agora, são só dois critérios. Primeiro, a bebida ter um lugar especial na sua vida, uma relevância. Dentro disso, experiências como beber acima do desejado, ter culpa por beber, sofrer muita ressaca, sentir perda do controle. O segundo critério é desenvolver um problema relacionado ao consumo, como beber e brigar, beber e não conseguir trabalhar, etc. Com essa mudança na forma de classificar a doença, o diagnóstico deverá ser mais precoce, e a preparação das equipes também.

Em média 16% da população se torna dependente, que é influenciado pelo padrão de consumo, pela predisposição genética e o ambiente em que a pessoa vive

  • G |Quando notamos que há um problema, o que podemos fazer?

    Ana Cecília Marques |

    Primeiro, procurar um médico generalista, que pode te ajudar e fazer encaminhamentos para um serviço especializado. O Ambulatório Médico de Especialidades em Psiquiatria Dra Jandira Masur, em São Paulo, tem programa para álcool, drogas, depressão, todos os transtornos. Participar de grupos de autoajuda como o AA (Alcoólicos Anônimos) e o AE (Amor-Exigente – FEAE) pode tornar o tratamento mais eficaz. Se você pode pagar, pode procurar um psiquiatra especialista em adições.

  • G |Para quem não é dependente mas quer pensar em uma redução de consumo, qual pode ser o caminho?

    ACM |

    O exercício de pensar o lugar do consumo de álcool na vida é o primeiro passo.  . E, com conhecimento, buscar uma vida mais saudável: não beber em dias seguidos, diminuir as doses, fazer uma detox para sair desse estilo de vida que a cultura enfia na gente. Bebida alcoólica tem que ser uma coisa esporádica. E precisamos trabalhar, como sociedade, o que a OMS coloca como qualidade de vida, que envolve o bem-estar espiritual, físico, mental, psicológico e emocional; saúde, educação, habitação digna, entre outros.

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