Coluna da Marilene Felinto: Morte às vidas severinas na universidade — Gama Revista
COLUNA

Marilene Felinto

Morte às vidas severinas na universidade

No curso de Letras, predominava então um alunado vindo de colégios de ricos, enquanto estudantes como eu, que vinham de escola pública, trabalhavam para se sustentar

29 de Dezembro de 2023

Terminar 2023 tendo feito uma palestra na Universidade de São Paulo, onde me formei, é quase uma façanha. Passados mais de 40 anos de minha formatura ali, e depois de ter, por algumas vezes, falado e ministrado minicursos em diversas universidades brasileiras e estrangeiras, da Europa e dos EUA, eis que me convidaram para falar na USP.

Devo lembrar que este texto é uma espécie de continuação da minha coluna anterior, de 15 de dezembro, nesta Gama, e que introduzia o seguinte questionamento: que a USP pode até ser a melhor universidade da América Latina, conforme é classificada em rankings, mas segue, desde sempre, reproduzindo privilégios que só servem para reforçar sua estrutura hierárquica autoritária e cristalizada na desigualdade racial e social.

Aquele primeiro texto resultou em uma ou outra pessoa branca me acusando de “ressentimento”, o que não procede, absolutamente. E provocou também, como sempre acontece quando se aponta algum privilégio da branquitude, que um ou outro espírito de porco despeitado viesse guinchar comentários imbecis nas redes sociais.

De resto, todos os que leram entenderam o que eu quis dizer, principalmente quem é negro e pobre entendeu. É o que importa. Esta versão que agora escrevo é decorrência da fala que fiz no campus daquela universidade, em outubro de 2023, intitulada “A USP e as Vidas Severinas de Ontem e de Hoje”.
Mas não foi a USP institucional que me convidou para falar – nenhum departamento ou professor de literatura, de língua portuguesa ou inglesa, as áreas em que me formei lá, nem de tradução ou jornalismo, áreas em que também sempre atuei. Foram estudantes do curso de pós-graduação em Letras da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), para o evento anual organizado por eles.

A USP continua a mesma dos meus tempos, uma reprodutora do status quo de certa classe dominante branca

E por que o convite merece relato? Porque ele confirma dois aspectos interessantes daquela universidade na minha percepção: que ela continua a mesma dos meus tempos, uma reprodutora do status quo de certa classe dominante branca, especialmente no que diz respeito ao seu corpo docente, e que só mudou um pouco hoje porque boa parte de seus alunos, graças ao sistema de cotas, são negros e alteram (até sem querer) aquele sistema encouraçado.

Muito significativo que o convite tenha sido feito especificamente por uma estudante negra, mestranda em literatura brasileira, e que tenha chegado a mim via aplicativo de uma rede social, o Messenger. Sinal de como mudaram as caras e as tecnologias, embora a estrutura continue a mesma.

Meu primeiro texto surgiu da reação de um marceneiro que levei outro dia até o principal campus da USP, no bairro do Butantan, em São Paulo. Ele me disse que já tinha trabalhado em diversos bairros ricos ao redor do campus, mas que nunca tinha entrado ali. Meu questionamento foi sobre a indiferença da USP a gente assim (o marceneiro e seus dois jovens ajudantes), que desconhecem a existência daquele sistema público de ensino superior que tanto se gaba de sua excelência em pesquisa científica.

Muito significativo que a universidade parecesse a eles um mundo à parte, do mesmo modo como me parecia logo que ingressei ali, há quase meio século. No final do segundo ano do meu curso de letras, pensando em desistir, escrevi um trabalho de fim de semestre intitulado “Morte à vida severina”, cheio de críticas ao curso meio alienado de Letras, eu que já trabalhava de tarde e de noite para me manter estudando no período da manhã.

Aqueles tempos eram duros para estudantes universitários das classes pobres como eu, muito mais difíceis, sem nenhuma política de inclusão ou acesso pela diversidade ou de apoio à permanência nos cursos (não que hoje esse apoio seja melhor). Ainda me pergunto como sobrevivi. No curso de Letras, ainda predominava então um alunado vindo de colégios de ricos como Santa Cruz, Bandeirantes e similares. Enquanto estudantes como eu, que vinham de escola pública, trabalhavam para se sustentar.
Devo reconhecer que tudo o que consegui ali foi com a colaboração pessoal (e ponho ênfase neste “pessoal”, em oposição ao “institucional”) de professores que têm nome: Nina Rosa da Penha Lourenço, Teresa Pires Vara, José Miguel Wisnik e Marilena Chaui. Sem o apoio dessas pessoas, que reconheceram qualquer coisa de valioso no meu texto e que me ajudaram a conseguir trabalho, bolsa de estudo, entre outros incentivos, eu teria desistido naquele segundo ano.

Meu estranhamento à falta de convites da universidade onde me formei vem também da minha observação do tipo de gente que é convidado para falar na FFLCH, em geral: homens brancos bem-comportados, mas também mulheres brancas cheias de compostura, todos do mesmo convescote acadêmico.

Imagino que o sistema USP deve me identificar (caso me identifique) com o ambiente vulgar e superficial da mídia, preferindo, por isso, evitar tipos assim. Sei que não sou uma profissional importante, mas sei também que há outros mais medíocres do que eu – que se consideram poetas e escritores e que, inclusive, lecionam por lá –, que estão sempre presentes em seus seminários, congressos e outros eventos.

Imagino também que, como mulher negra (e, portanto, considerada ainda menos importante), e como meu jeito de escrever (na ficção e no jornalismo) não condiz com o decoro da postura acadêmica, talvez eu passe por indecente ou escandalosa demais para o oficialismo universitário.

De todo modo, estas ideias aqui discorridas são constatação, percepção e confirmação do que vivi, do que a educação brasileira ainda faz os estudantes pobres viverem e do tanto que me recusei a seguir vivendo, a vida dura (vida severina, para evocar João Cabral de Mello Neto) que o sistema USP ignorava. Já naquele trabalho de fim de semestre, aos 19 ou 20 anos, eu citava o que faria da minha vida:

“Eu não serei célebre, nem grande; eu continuarei a ser uma aventureira, a mudar, a seguir o meu espírito e meus olhos, recusando ser etiquetada e estereotipada. O problema consiste em liberar-nos a nós mesmos, encontrar nossas verdadeiras dimensões, não nos deixarmos atrapalhar… Eu não quero escrever nada que não me dê prazer… Eu não devo nada a ninguém… Eu não escreverei nunca para converter ou agradar alguém….” (Virginia Woolf, “A Writer’s Diary”).

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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