Trecho de Livro: Trabalho Doméstico, de Juliana Teixeira — Gama Revista

Trecho de livro

Trabalho Doméstico

Filha de trabalhadora doméstica, a pesquisadora Juliana Teixeira traça um panorama da atividade no Brasil desde suas origens escravocratas

Leonardo Neiva 29 de Outubro de 2021

Filha única de uma trabalhadora doméstica, a pesquisadora e doutora em administração Juliana Teixeira escreve sobre as histórias de milhões de outras mulheres que compõem parte importante do Brasil, mas que, como ela, são invisíveis aos olhos da história oficial.

“Trabalho Doméstico” (Jandaíra, 2021) é o décimo primeiro livro da Coleção Feminismos Plurais, coordenada pela filósofa e escritora Djamila Ribeiro. Ao unir experiência pessoal à detalhada pesquisa que fez para seu doutorado em administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Juliana traça um abrangente panorama histórico e social do trabalho doméstico no Brasil.

Com base em relatos de mulheres de diferentes idades e origens que exercem a profissão no país, além de uma pesquisa bibliográfica aprofundada, a autora vai das origens escravocratas que são a base da atividade por aqui até a importância de sua regulamentação, num texto que entremeia questões essenciais como racismo, gênero e classe social.

E, em algumas das primeiras páginas da obra, retratadas abaixo, aponta para um retrato tristemente verdadeiro no país, uma realidade “que deveria ser fonte de indignação pública, mas permanece altamente disseminada: encontramos mulheres em condição de cárcere e escravização doméstica.”


No centro, as trabalhadoras domésticas

Eu sou filha única de Maria, mulher negra nascida em Conceição da Barra de Minas, interior de Minas Gerais, e trabalhadora doméstica. Sou de uma geração de domésticas. Nasci em São João del-Rei, onde minha mãe trabalhou a vida toda na casa de outras famílias. Para uma, por mais de 20 anos. Minha mãe estudou até a quarta série do atual Ensino Fundamental, foi mãe solo com uma trajetória similar à de muitas outras mulheres.

Como filha da Maria (como fui chamada muitas vezes ao ser apresentada para outras famílias da classe média alta da cidade), vivenciei o cotidiano do trabalho doméstico como “a filha que ela não tinha com quem deixar”. Ajudei minha mãe no trabalho muitas vezes para tentar chegar em casa mais cedo do que o previsto. Lembro de lavar e secar a louça de um jeito que os patrões não reclamariam depois. Guardo até hoje as memórias das orientações da minha mãe sobre como me comportar, que viraram, por exemplo, rotinas incorporadas ao lavar louças, até na minha casa.

Maria, numa vida sem tempo de cuidado de si e de muito choro pós-trabalho, faleceu aos 48 anos de idade. Eu, filha única, tinha 16 anos

Minha mãe, mesmo com muitas dificuldades, tornou meus estudos prioridade. Eu me agarrava a eles porque eram minha promessa pessoal de dar a ela uma vida diferente. Não deu tempo, infelizmente. Maria, numa vida sem tempo de cuidado de si e de muito choro pós-trabalho, faleceu aos 48 anos de idade. Eu, filha única, tinha 16 anos. Não conheci minha avó, Dinha. Também faleceu precocemente quando minha mãe me gestava em seu ventre.

Aos muitos trancos, e aos muito barrancos, segui meus estudos. Não era mais sobre dar uma vida diferente à minha mãe, mas agora era questão de abrir um caminho que me trouxesse a felicidade que ela queria para mim. Quisera eu que me formar na faculdade, fazer um mestrado, fazer um doutorado, tivesse sido mais fácil para mim, e para tantas outras pessoas que conquistaram seus objetivos. Conseguimos ultrapassar estatísticas normalizadas, e ainda assim vivenciamos cotidianamente os efeitos do racismo. Quisera eu não ser um dos pontos fora da reta, como diz uma amiga.

Quisera eu também que uma das motivações de luta ligadas à discussão deste livro não fosse a morte de Miguel em 2020, criança de cinco anos que caiu do nono andar de um prédio em Recife, quando foi deixado aos cuidados de Sari Corte Real, enquanto sua mãe, Mirtes Renata, trabalhadora doméstica da residência, saiu para passear com o cachorro da patroa. Miguel andou sozinho de elevador. E parou num andar onde acabou caindo ao procurar por sua mãe. Miguel, Mirtes, espero poder honrar algo possível dentro da busca por justiça. Da busca para que outros Migueis não sejam interrompidos. Quantas e quantos de nós não poderíamos ter sido o Miguel ali naquele momento? Quantas de nós não poderíamos ser a mãe que chora a morte injusta e precoce de seu filho? Quantas não são as mulheres negras que já choraram, e choram, a morte de seus filhos?

Na responsabilidade gigante que é escrever este livro, que envolve muitas histórias entrecruzadas, honro as que vieram antes, e que possibilitaram que a orgulhosa filha da Maria defendesse em 2015 uma tese de Doutorado sobre trabalhadoras domésticas. E ainda que esse feito tenha sido possibilitado como uma daquelas tarefas da vida que só as forças ancestrais podem explicar. E ainda num curso de Doutorado em Administração, quem diria. Busco honrar as que vieram antes, e que nos permitem, coletivamente, empreender esforços de reparação histórica e que é nossa por direito. São essas que vieram antes que permitem a existência de uma coleção de livros tão brilhante e política como esta.

Quantas não são as mulheres negras que já choraram, e choram, a morte de seus filhos?

Neste livro, ao falar do trabalho doméstico, foco nas trabalhadoras domésticas remuneradas, colocando-as no centro como via de compreensão da função que exercem. Aproximadamente 20% das mulheres no Brasil são trabalhadoras domésticas remuneradas, de acordo com dados de 2019. Sabendo que as antecessoras históricas são as personagens das escravas domésticas durante o período colonial, observamos que 64% delas atualmente autodeclaram negras.

O primeiro estudo acadêmico de que se tem registro sobre o trabalho doméstico no Brasil foi o de Heleieth Saffioti, publicado em 1978, com o título “Emprego doméstico e capitalismo”, sendo contextualizado pelo então recente reconhecimento desse trabalho como profissão (o que ocorreu em 1972). Desde então, o tema tem sido considerado incômodo por escancarar desigualdades raciais, étnicas, de gênero e de classe.

Ele é quase que em sua totalidade desempenhado por mulheres (97%), sendo que a maior parte dos homens nessa ocupação desenvolvem atividades fora do âmbito doméstico fechado, como as de caseiro e jardineiro. Essa maioria feminina é resultado da construção social que estabelece que as atividades domésticas são biologicamente ligadas às mulheres. Essa, que é uma construção de poder, também teve como pressuposto que os homens seriam mais aptos para funções produtivas fora do espaço da casa, e mais aptos para construir a vida política e pública. No entanto, as mulheres negras no Brasil tiveram que se submeter a diversos tipos de trabalho desde a escravização, dentro das casas ou fora delas. Ao longo da história, e mesmo após a abolição formal da escravatura, o trabalho doméstico tornou-se um dos principais meios de sobrevivência dessas mulheres.

No Brasil, elas se dividem entre diaristas e mensalistas (sendo que essas últimas podem estar ou não formalizadas). Atualmente, a Lei Complementar nº 150, de 2015, define como empregado doméstico no Brasil aquele que exerce atividade contínua e não lucrativa para pessoa física no ambiente doméstico. Para que não exista vínculo empregatício, a lei determina que a atividade não pode ser executada para um mesmo empregador por mais de dois dias na semana. Aqui, chamarei de mensalistas as trabalhadoras domésticas que recebem salário mensal fixamente estabelecido, e que trabalham mais do que três dias na semana, estando ou não em condição de formalidade. E os dados estatísticos citados referem-se ao conjunto de trabalhadoras domésticas, considerando tanto diaristas quanto mensalistas.

Atualmente, ainda é possível vermos trabalhadoras domésticas tratadas sob a conotação simbólica da criada. E, o que deveria ser fonte de indignação pública, encontramos mulheres em condição de cárcere

Neste livro, falo de mulheres que não foram retratadas como protagonistas pela História tradicional, se considerarmos que essa História tradicional foi contada pelos vencedores, como frisa Maria Coronel. Essas mulheres foram/são intituladas escravas domésticas, criadas, empregadas domésticas mensalistas e diaristas. Quando falo desses títulos diferenciados, nessa ordem, não quero dizer que eles tenham se sucedido de forma linear na história. Atualmente, ainda é possível vermos trabalhadoras domésticas tratadas sob a conotação simbólica da criada. E, o que deveria ser fonte de indignação pública, mas permanece altamente disseminada: encontramos mulheres em condição de cárcere e escravização doméstica.

Produto

  • Trabalho Doméstico
  • Juliana Teixeira
  • Jandaíra
  • 248 páginas

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