CV: Eliane Dias — Gama Revista

Curriculum Vitae

CV: Eliane Dias

©Lucas Tomas Neves

“Saiba o que você quer” é a lição profissional número um da advogada e empresária

Laura Capelhuchnik 03 de Junho de 2020

A empresária e advogada Eliane Dias está à frente da gestão da carreira dos Racionais MC’s, o maior grupo de rap do país, e de outros oito artistas.

Ela nasceu e cresceu na periferia de São Paulo e, desde os 14 anos, tem de custear os próprios projetos. Foi babá, empregada doméstica, modelo e trabalhou com serviços de atendimento ao consumidor. Deixou um emprego de que gostava na área para ter os filhos, Jorge e Domenica, que hoje acompanham seus passos na produtora Boogie Naipe.

A formação em direito veio depois de anos dedicados à maternidade, unindo uma vontade antiga ao ímpeto de romper a imobilidade que o estigma do gênero traz. Um dos episódios que ela narra como ponto de virada foi ser barrada pelo marido, Mano Brown, voz dos Racionais, de uma viagem internacional. O motivo: ser a única mulher entre os tripulantes. Respondeu à restrição com o projeto de retomar os estudos e focar em um caminho sólido e sem desvios de retomada da vida profissional.

Em 2012, já formada e atuante, foi requisitada pelo quarteto mais importante do rap nacional para assumir os negócios da banda — e demorou seis meses para dar uma resposta positiva. Fundou em 2013, junto com Mano Brown, a Boogie Naipe, que desde já prepara os filhos para assumir. Ou, para que, se optarem por outro caminho, desenvolvam independência e autonomia de chefiar a própria trajetória, como ela diz.

Em 2017, a produtora levou o título de empreendedora musical do ano no Women’s Musical Event Award, premiação dedicada às mulheres da música no Brasil. Além do trabalho na produtora — parcerias com marcas, agenciamento de artistas e organização de eventos — Eliane também equilibra a militância política e as palestras que faz pelo Brasil sobre assuntos ligados a gênero, classe e raça.

Nesta mesma vida, também já trabalhou como assessora parlamentar e foi coordenadora do S.O.S Racismo, unidade de combate à discriminação racial na ALESP (Assembleia Legislativa de São Paulo). Confira a conversa de Eliane com a Gama sobre carreira, empresa familiar e machismo no mundo empresarial e musical.

  • G |O que te trouxe até aqui?

    Eliane Dias |

    Saber o que eu quero. Eu sei perfeitamente qual foi a grande virada que eu tive e sei o porquê: porque decidi o que eu queria.

    Acho que tudo muda depois disso. Na minha visão e na experiência de vida que tenho, quando você decide o que você quer, o universo conspira a seu favor e a sua vida vai sendo levada ao encontro daquilo. É assim com todas as pessoas que eu acompanho de perto.

    Decidi ser advogada ainda menina e fui levada a isso. Mas é como sempre falo, no meio do caminho, às vezes, a gente desvia para a esquerda, direita, comigo não foi diferente. Antes de eu ser advogada, eu trabalhava, estava focada em outras coisas, queria ter filhos e ficar um tempinho com eles. Estava numa relação conjugal diferenciada, em que eu poderia me permitir ficar com meus filhos durante um período, educá-los. Mas não tem jeito, quando a gente quer alguma coisa vai ser levado a ela: de repente  vi que o tempo de cuidar dos filhos estava vencendo, as coisas em casa não me deixavam completamente feliz — eu tenho consciência de que casamento não é aposentadoria para ninguém. E aí tive a gota d’água, queria fazer outras coisas, e sem trabalho não ia conseguir. Então, de novo, fui fazer o que eu queria fazer e voltei a estudar.

Domenica Dias, Mano Brown, Jorge e Eliane Dias em casa, durante a quarentena
  • G |Qual é o segredo para trabalhar bem em família?

    E. D. |

    Olha, eu trabalho bem, mas a família surta às vezes. É bem difícil, no fim, não recomendo para ninguém. Mas eu tenho um projeto: a empresa será administrada pelo meu filho Jorge, se assim ele quiser. Ele está sendo preparado para isso: tem 24 anos e trabalha comigo desde os 17. Foi educado para ser dono do seu próprio negócio. Domenica também. Então isso é um projeto que eu resolvi encarar, de meus filhos serem empresários, saberem se virar. Se não quiserem, ok, mas estão preparados para isso. Mas não é fácil. O segredo é que eu aperto e afrouxo. Ao mesmo tempo em que sou uma pessoa que controla, também deixo os outros tomarem decisões. Eles podem decidir, têm autonomia, são pessoas de minha confiança. E ao mesmo tempo que eu tomo conta, estou observando, dou autonomia. E todo mundo aqui vive disso, a gente sabe que o nosso salário é a gente que faz, e se não trabalhar, o dinheiro não entra. E eu trabalho muito, a minha família vê o tanto que eu trabalho, eles me acompanham e têm que aprender de um jeito ou de outro com o meu exemplo. Eu não preciso falar, eu estou ali fazendo. Mas é muito difícil ser certo o tempo todo.

  • G |Já pensou em desistir?

    E. D. |

    Não, aqui a gente não tem essa opção. Quem é o preto que tem a opção de desistir? Não conheço nenhum. Desistir é para herdeiro, e eu não sou herdeira. E nem tem por quê. Desistir de nada: começar as coisas, traçar, fazer planos, ter ideias, encarar. E vai realizar. O que tenho são projetos para o futuro: estou aqui vivendo o hoje, que eu acho importante, mas tenho projetos. Sou advogada, e quando eu não servir mais para ser produtora — vai chegar o momento em que a produção vai ficar para o Jorge, para as pessoas mais jovens. Quando eu vir que não tenho mais paciência, ou idade, tem outras coisas que eu tenho vontade de fazer. Uma delas é voltar a advogar e continuar sendo palestrante. Mas desistir? De nada.

  • G |Você já transita por inúmeras áreas, tem esses planos para o futuro. Como enxerga os recomeços?

    E. D. |

    Acho que nunca é tarde. Eu terminei o MBA em gestão empresarial no ano passado. Tenho ainda algumas pendências, matérias de matemática que terei de refazer [risos], mas no curso estudei inúmeras empresas que temos como referência, como a Rede Globo. E olha só, o Roberto Marinho criou a Globo aos 63 anos de idade. Também estudei uma empresa que faliu por seis vezes e depois eles estouraram. Então nunca é tarde, se você souber o que quer. Mas tem uma coisa: é bonitinho errar, começar do zero, quando você tem 18, 20 anos. Mas chega aos 25, que você tem aí 30 anos para fazer a sua aposentadoria, e não é fácil, não dá mais para ficar errando, começar e recomeçar de novo… Tem que saber mais ou menos o que quer, qual é seu dom, e aceitar o que faz bem. Não tem cabimento ficar começando do zero com 20, 30 anos e a mãe se matando de trabalhar. Tem que seguir em frente: eu falo isso para os meus filhos, que não vou ficar sustentando ninguém até os 30 anos, e eles levam isso a sério. Com 14 anos minha mãe já não me sustentava. Eu trabalhava e pagava minha escola.

  • G |Como você enfrenta racismo e machismo no mercado de trabalho?

    E. D. |

    Olha, é puxado, cansativo. Muitos picos de estresse, vontade de falar assim “pô, estudei cinco anos, sou advogada, e estou aqui enfrentando esse universo”. Mas eu tinha que fazer isso. Comecei a trabalhar na produção dos Racionais porque eu tinha o intuito de organizar toda a obra do grupo. Tive que fazer isso porque os direitos autorais são herança dos meus filhos. E meu objetivo era maior do que a minha vaidade de estar na minha própria carreira. Porque uma hora eu vou morrer, o pai vai morrer, não tem jeito, e eu queria que tudo ficasse organizado para eles. Hoje a linha entre vida e morte é muito tênue, ainda mais neste momento de pandemia. Com relação ao preconceito, olha, eu tenho uma grande dificuldade em receber o não como resposta. Nunca sei se o não está vindo por um preconceito, se o não está vindo por uma discriminação, porque o machismo é absurdo. E aí eu preciso que me digam não quatro, cinco vezes para entender que realmente é um não. O racista, quando tenta agir comigo, o racismo pra mim é um combustível. Quanto mais as pessoas são racistas, mais eu vou falar: você vai ter que me engolir e eu vou ocupar esse espaço aqui. E você vai sofrer. Porque não adianta dizer que a minha raça é inferior, eu estudei a minha raça, que é incrível, maravilhosa, fantástica. Eu sei quem eu sou, me olho no espelho, e nada disso vai me abalar. E com relação ao machismo, piorou. Porque eu passo mal. A minha vontade é humilhar o machista. Eu sei como fazer isso muito bem. Sou feminista, e a feminista tem palavras que desequilibram qualquer machista. A gente não tem medo e vai pra cima. Quando estou diante de uma atitude machista é sofrido, porque eu tenho vontade de agir desse jeito, ser incisiva. E às vezes não posso, tenho que ser uma mulher estratégica. Tenho que olhar, rebobinar a fita na minha cabeça e usar outra metodologia para vencer aquele machista. Consigo vencer o machismo às vezes com inteligência, às vezes com enfrentamento.

  • G |Como você concilia tantas frentes de atuação? Como se prepara para todas elas?

    E. D. |

    É uma rotina puxada, mas faço o que eu gosto. Fazer o que você gosta já te deixa um passo à frente. E as coisas se comunicam, então fica tudo quase que num laço só.Trabalho como empresária no mundo musical, mas sou politizada, consigo antever as coisas pelo fato de acompanhar de perto o que acontece no mundo, na economia, as entradas e a saídas dos governos, como toda liderança faz. Se eu vejo, por exemplo, que vai entrar um governo reacionário nos Estados Unidos, já penso o que vai implicar para a produtora Eliane aqui no Brasil, quais as consequências: nas turnês, para tirar documento, entrar no país. Tenho esse raciocínio rápido. E as coisas se comunicam, entender de política, entender da parte empresarial. O mesmo para fazer palestras: os temas permeiam esses mesmos assuntos, e além disso, para me preparar, às vezes estudo um livro, estudo o momento, entendo o que está se passando.

  • G |O que você diria para alguém que pensa em trilhar um caminho parecido?

    E. D. |

    A primeira coisa que as pessoas têm que saber é que ativismo não é fácil e não paga conta. Não significa que você vai ter um salário todo mês. Tem que estudar primeiro, saber o que você quer e daí ver se o ativismo se enquadra dentro da sua profissão. Atores e atrizes às vezes não podem ser ativistas, por exemplo. Tem que definir o que você quer, porque traz muita encrenca. Para quem quer ser empresário no mundo musical é um desafio porque tem que criar, pensar, mas não pode ter a vaidade de querer ser mais que o artista, chegar de carruagem. Tem que ficar no backstage, estar ali para pensar em como fazer o outro brilhar. Basicamente, para tudo isso tem que saber o que você quer, qual é o seu lugar no universo.

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