Bairro da Liberdade: vamos logo para a Galvão Bueno - Uma investigação — Gama Revista
©Andres Sandoval

Bairro da Liberdade O lugar dos restaurantes, dos karaokês e de um mundo inteiro de cantos e pessoas interessantes é examinado por Fabrício Corsaletti

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Vamos logo para a Galvão Bueno

Fabrício Corsaletti 29 de Março de 2020

Os karaokês da rua da Glória (e seu predinho no número 111) ou os restaurantes da Galvão Bueno (e seu hotel delicioso)? Deve ser o mau humor a que esse governo nos obriga, ou os 40 anos recém-completados (vai nessa), o fato é que me deu preguiça de falar de karaokês. Adoro karaokê, é um dos símbolos do nosso tempo — distópico, autoirônico e narcisista.

Meu mundo caiu.

Ainda encontro a fórmula do amor.

Eu sou a luz das estrelas.

Mas só de pensar em tequila com energético, amigos abraçados pra cantar junto, namorada dizendo te amo seu louco, você devolvendo te quiero preciosa, dá-lhe Shakira, chupa Latino, aôôô Katinguelê, temaki com gosto de queijo-coalho, espetinho sabor carne de animal desconhecido, cerveja na calça ah não meu celular, alguém aí viu um casaco azul? Só de pensar já fico alucinado e quero ir hoje mesmo ao Okuyama. (Chega de mentiras, de negar o meu desejo.) Mas não quero escrever sobre isso.

Certeza?

Certeza.

Então vamos logo pra Galvão Bueno, esquina com a rua São Joaquim.

* * *

Kidoairaku. Restaurantezinho maravilhoso. Na primeira vez em que estive lá, logo na entrada havia uma senhora (a dona do lugar, depois me informaram) sentada numa cadeira de área, dessas de fios de nylon, descabelada e com um vestido velho, chupando melancia. Quase dei meia-volta. Achei que por engano tinha invadido a casa de alguém. Mas olhei à direita e vi o balcão.

glória ao balcão
a nossa tábua
de salvação

Em frente a ele, uma escada de meia dúzia de degraus. Nesse andar superior ficam as mesas, dispostas em duas salas. Mas estou sem paciência (e sem espaço) pra descrições. Veja fotos no Google. E depois vá até o Kidoairaku comer teishoku. É muito bom. Um pouco caro. O prato do dia sai mais em conta.

Continuando pela Galvão Bueno em direção à praça da Liberdade, temos à esquerda o bom e velho Taizan. O restaurante é um imenso quadrado; devem caber umas duzentas pessoas. Os garçons se vestem à antiga, com gravata borboleta. Gosto de ir ao Taizan quando o salão já está quase vazio, por volta das duas da tarde. De preferência com amigos, pra poder pedir mais de um prato, que são grandes, e dividir. Saquê. Cerveja. Bambus e samambaias no jardim de inverno. A solidão reconfortada.

Na quadra seguinte, avistamos à esquerda o Aska, lamen dos deuses, sempre com fila de espera, e à direita o Nikkey Palace Hotel, simplesmente um clássico.

O leitor blasé dirá: a Liberdade não é o Japão, meu. Ao que responderei: e o Brasil não é o Brasil, cara

Fundado em… Bom, não sei em que ano o hotel foi fundado porque a assessoria de imprensa do Nikkey, inexistente, não quis me passar essa informação altamente sigilosa, que, imagino, poderia pôr em risco a segurança dos proprietários e dos hóspedes. A gerente, com quem entabulei uma conversa enroscada, disse que eu precisaria enviar a pergunta de um e-mail comercial; ela a repassaria a seus superiores. Não tenho e-mail comercial, sou um escritor fazendo um frila, estou aqui na sua frente, vivo e um pouco cansado, por favor me diz o ano da fundação do hotel. Sinto muito, senhor, mas são normas da casa, o senhor precisa enviar as perguntas a partir de um e-mail comercial.

(Será que ela pensou que eu planejava assaltar o Nikkey ou qualquer besteira do tipo? Comecei a desconfiar do seu tom de voz. Voltei pra casa com a certeza de que me seguiam. Aliás, não voltei pra casa. Parei num hotel do centro, comprei uma garrafa de vinho e uma penca de bananas e passei a noite sentado diante da janela, de olho na rua polvilhada de mendigos, o celular desligado, numa paranoia inundada de suor.)

Gosto de saber a data em que as coisas começaram, mas agora é uma questão de honra: não quero mais saber a data de fundação do Nikkey. Mesmo assim, vou continuar fã daquela espelunca fantástica, onde minha namorada e eu nos hospedamos duas vezes. Não tínhamos nem tempo nem dinheiro pra planejar uma viagem, digamos, mais internacional. Então decidimos viajar pra Liberdade. Recomendo. Muito melhor do que ir pra Bauru.

Tudo me agrada no Nikkey (menos a assessoria de imprensa, inexistente). O café da manhã à japonesa, com anchova grelhada e missoshiru. O balcão do restaurante, que, em 2009 ou 2010, ano da nossa primeira hospedagem, era comandado pelo sushiman Samuel, verdadeiro samurai do peixe cru — um cara que inspirava uma confiança tão grande que, se fosse barbeiro, eu deixaria que me barbeasse durante um terremoto. Os quartos com papel de parede pintado de bege, em cujas bancadas imensas você pode espalhar toda a sua coleção de sei lá o quê, ou botar seus quinze filhos pra fazerem a lição de casa; o ofurô no lugar da banheira; os detalhes em madeira cor de cerejeira (que talvez seja pínus). A sauna seguida de shiatsu. O shiatsu seguido de uísque. O uísque seguido de outro uísque no karaokê pequenininho que funciona no café-bar em frente aos elevadores. E aqui tocamos num ponto crucial: o Nikkey tem o seu próprio karaokê! Você vem da rua tarde da noite, bêbado feito um viaduto, se dirige com dificuldade ao elevador e de repente vê: japoneses ensandecidos cantando “My Way” aos berros. Uma visão lírica como a da neve que cobre os telhados no romance O “País das Neves”, de Yasunari Kawabata (editora Estação Liberdade). Acho que não exagero ao afirmar que o karaokê do Nikkey foi o mais perto que cheguei do Japão. O leitor blasé dirá: a Liberdade não é o Japão, meu. Ao que responderei: e o Brasil não é o Brasil, cara.

Na manhã seguinte, mais anchova grelhada e missoshiru, e o ciclo recomeça.

Viva o hotel Nikkey, tesouro paulistano, a despeito de sua assessoria de imprensa inexistente, lamentável.

Ainda na mesma quadra, você pode subir a escada íngreme (na volta, se breaco, desça sentado, é mais seguro) do Kabura, e se esbaldar com seu cardápio extenso, repleto de boas surpresas. No entanto, o que mais me atrai no Kabura não é a comida mas a decoração — a luz vermelho-ferrugem do ambiente. Sei lá, dá vontade de assistir a alguma cena de filme romântico ou policial (se é que há diferença entre eles) rodada ali. Deve ser por isso que nunca lembro desse restaurante: ele parece pertencer a outra dimensão da realidade, uma dimensão mais intensa e sutil.

Nesse momento, estamos bastante próximos da praça da Liberdade. Repare nas lojas, talvez você encontre algo interessante. Uma delas, que muito me intriga, aluga karaokês e vende meias. Meias e karaokês: qual a relação entre eles? É melhor cantar de meia do que pelado? Você vai ficar meia loka quando começar a cantar? Meia comigo esse microfone, miga?

Não sei nem preciso saber. A vida também é feita de mistérios. Por exemplo, por que a prefeitura e/ou os empresários japoneses não pintam os postes e o Portal da Liberdade (que nome, que nome, sempre que passo debaixo desse belo pórtico de ferro espero por grandes transformações na minha vida)? Estão desbotados, horrorosos, indignos. E mesmo assim o povo, gente boa por natureza, apesar de ter eleito essa anta pré-histórica presidente, o povo, eu dizia, parece estar apaixonado pela Liberdade e nos finais de semana dobra ou triplica (estou chutando) sua população. Do ponto de vista turístico, comercial, não seria uma boa oportunidade investir no bairro mais simpático de São Paulo?

Mas a política miúda revolta e deprime. Melhor dar adeus a este dia azul e se embrenhar nas trevas do metrô.

Fabrício Corsaletti nasceu em 1978 em Santo Anastácio, Oeste do Paulista. Formou-se em letras pela USP e desde 1997 vive na capital. Publicou quase 20 livros, entre eles “Esquimó”, “Perambule”, “Poemas com Macarrão” e “King Kong e Cervejas”  

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