Eu não sou somente preto — Gama Revista
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Ser preto no Brasil Uma série de quatro textos do jornalista Pedro Borges, co-criador da agência de notícias Alma Preta, sobre as barreiras de crescer como jovem negro no país, o processo de quebrar estereótipos, o amor pela profissão, pelo movimento e a celebração daqueles que vieram antes

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Eu não sou somente preto

Pedro Borges 19 de Novembro de 2020

“É discussão sobre jornalismo, periferia e racismo? Ah, tem o Pedro Borges.” Neste caso, quando são formadas bancadas ou espaços de debate, eu costumo ser lembrado e convidado a compartilhar sobre a experiência profissional da Alma Preta.

Me incomoda? De maneira alguma. Eu sou isso mesmo. Sou um rapaz preto, que cresceu na periferia de São Paulo, na zona norte, na Brasilândia. Acima de tudo, como vocês devem ter percebido, um cara muito orgulhoso da sua raça.

“É discussão sobre jornalismo e política? Ah, não conheço nenhum jornalista preto.”

Essa segunda frase é bem comum. E essa sim me incomoda bastante. Me deixa nervoso porque todos os dias acompanho e construo para a Alma Preta noções e estratégias para o desenvolvimento de uma cobertura jornalística sobre a política nacional a partir do prisma de raça.

A gente cobre temas ligados a caixinha da ‘igualdade racial’ e os brancos cobrem todos os outros assuntos: economia, meio ambiente, saúde, segurança, e por aí vai

Mesmo assim, eu me sinto apagado. Parece que as pessoas não conseguem perceber o que fazemos.

Parece que a única condicionante da minha vida é a minha marcação racial. Parece que todo o meu trabalho e reconhecimento existem pelo o que sou, e não pelo o que fiz, mesmo que a partir de quem eu sou (quem não?).

O reflexo disso é o espaço que ocupo e nós jornalistas pretos ocupamos dentro do mercado da comunicação. Por sermos profissionais especializados em “coisas de preto”, não podemos coordenar uma redação de jornalismo de uma imprensa corporativa, ou mesmo participar de entrevistas com figuras públicas, políticas ou cientistas, que não sejam negros.

A gente cobre temas ligados a caixinha da “igualdade racial” e os brancos cobrem todos os outros assuntos: economia, meio ambiente, saúde, segurança, e por aí vai. Isso porque ainda não entenderam que o racismo estrutura o país e atravessa todos esses temas. Mas mesmo que não atravessasse, somos também sujeitos universais.

O racismo tenta nos enquadrar, literalmente, em espaços limitados, muito pequenos para abarcar toda a nossa singularidade

Essa é uma dinâmica que se amplia para outras áreas da vida. Por ser negro, todos os meus gostos devem estar alinhados com as expectativas do que as pessoas imaginam ser o desejo de pessoas negras.

Eu, por exemplo, sou preto e torço para o Palmeiras, apesar de a vida inteira ter ouvido: “Você tem uma cara de corinthiano”. Respeito demais o Corinthians e o Santos, times de identificação com a comunidade negra, mas não é porque torço para o Palmeiras que deixo de ser quem eu sou.

Quando um policial me enquadrar na rua, vou falar para ele: “Policial, com licença, acho que você se confundiu. Eu sou preto, mas torço para o Palmeiras. Pode dar uma aliviada no enquadro e me deixar voltar para a casa?”.

De tão impossível e sem noção, o diálogo é ridículo. Esse papo é tão sem noção como qualquer tentativa de nos limitar a negritude e de nos colocar em caixas e padrões.

Isso porque às vezes me considero bem o que se espera de um homem negro na sociedade: adoro uma roda de samba, sou apaixonado por uma escola de samba, gosto muito de futebol e de uma boemia.

Mas não é apenas isso que sou. Sou também um cara que chora, sensível, que compra presente para quem ama, que sonha em ser pai, tudo o que não se imagina de um homem negro.

A questão é que o racismo tenta nos enquadrar, literalmente, em espaços limitados, muito pequenos para abarcar toda a nossa singularidade. Eu sou uma pessoa.

Pedro Borges é co-fundador e editor chefe da agência de jornalismo Alma Preta. Jornalista formado pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), compõe a Rede de Jornalistas das Periferias, a Coalizão Negra por Direitos e a diretoria de comunicação da escola de samba Camisa Verde e Branco. Pedro também é colunista da Mídia Ninja e colaborador do Yahoo Notícias e Uol.

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