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Direto de Barcelona

A obrigatoriedade de ficar em casa pode parecer o maior dos problemas para uma jornalista especializada em viagem. Mas a questão vai bem além disso

Adriana Setti 03 de Abril de 2020

Na quinta-feira, dia 26 de março, todos os hotéis da Espanha foram fechados para turistas. Publicada no Boletim Oficial, uma lista indica os 370 estabelecimentos que podem continuar funcionando, exclusivamente para alojar profissionais da saúde e do transporte, além de policiais e militares. Pelo menos outros dez estão sendo convertidos em hospitais em Madri e Barcelona (onde vivo há 20 anos), cujos aeroportos operam com alguns de seus terminais interditados. Desde que o governo espanhol decretou o estado de emergência, há quase três semanas, o tráfego aéreo nacional foi reduzido em 90%, enquanto as viagens ferroviárias de média e longa distância caíram 95%, segundo dados do Ministério do Transporte.

Além de assistir como o país se fecha ao turismo, e nos isola do resto do mundo, recentemente acordei com a notícia de que o site para o qual escrevo semanalmente congelou nosso acordo por tempo indeterminado. Com isso, me sinto mais próxima dos 3 milhões de espanhóis que tiveram seus contratos de trabalho suspensos temporariamente através dos ERTE (Expediente de Regulamentação Temporária de Emprego) desde que a quarentena começou, dia 14 de março, e dos outros 900 mil que foram despedidos antes que o governo vetasse, em 28 de março, as demissões por coronavírus.

À primeira vista, a obrigatoriedade de ficar em casa pode parecer o maior dos problemas para uma jornalista especializada em viagem. Mas a questão vai bem além disso. Mesmo que estivesse à sombra de um coqueiro em Vanuatu, país do Pacífico Sul ao qual a pandemia não chegou, seria absurdo falar de prazeres tropicais enquanto a patinação de gelo de Madri é convertida em necrotério. É como se, subitamente, o conteúdo de viagem tivesse se tornado impróprio: os novos mamilos banidos do Instagram. Não à toa, influencers do setor do turismo estão perdendo fortunas com o cancelamento de parcerias e a queda da receita com marketing de afiliados (vendas que derivam de suas recomendações). Não é o meu caso, mas estamos no mesmo barco encalhado.

Não à toa, influencers do setor do turismo estão perdendo fortunas com o cancelamento de parcerias e a queda da receita

Ainda que a Itália, que é logo ali, esteja em quarentena desde 24 de fevereiro, o ponto de inflexão aqui na Espanha só aconteceu 9 de março, quando os casos de coronavírus dobraram em 24 horas, chegando a 1.200 (25 dias depois, há 117.710 contagiados lá fora, e 10.935 mortos). Desde então, foquei meu trabalho em compartilhar notícias atualizadas e responder a centenas de seguidores aflitos, muitos deles com viagem marcada para a Europa, pelo Instagram (@drisetti). Também venho escrevendo e dando entrevista para diversos meios de comunicação sobre a situação atual no país, na esperança que a tragédia espanhola sirva de exemplo para os brasileiros.

Com o intuito de tornar o tempo de reclusão mais produtivo para meus leitores, também tenho garimpado a selva on-line, repentinamente acometida por uma pandemia de lives, em busca de coisas que valham a pena. É um sopro de otimismo ver a quantidade de iniciativas bacanas e gratuitas que estão surgindo da desgraça: shows do sofá, concertos, peças de teatro, meditações guiadas facilitadas por profissionais renomados, cursos on-line. Chego a invejar quem está com tempo e/ou foco para consumir tudo isso.

Meu marido (Cássio) e eu fazemos home office e trabalhamos com o pé na estrada desde antes desse estilo de vida ser batizado de “nomadismo digital”. Estamos acostumados com os desafios que essa condição impõe em termos de autodisciplina, convivência intensiva e o perigo constante de ter a geladeira por perto. Além de cultivarmos vasta experiência em ganhar a vida de pantufas, não temos filho. Portanto, nossa rotina diária não foi alterada tão drasticamente.

Verdade seja dita, também entramos no confinamento com a “vantagem competitiva” de termos acabado de concluir uma odisseia de quase quatro meses pelo Brasil, que incluiu passagem por seis estados, mais de 15 voos e uma agenda social tão agitada quanto o carnaval da Anitta. Isso certamente torna mais fácil assimilar o cancelamento da viagem que faríamos em abril e, quem sabe, nossos planos para maio e junho também.

Para quem passa mais tempo viajando do que em casa, o repentino impedimento de sair por aí também tem seu lado interessante. Estou aproveitando a reclusão para fazer um detox (nada de vinhozinho na house party, portanto) e adotar uma dieta ultra saudável. Se para muita gente é missão impossível controlar a fome e a “sede” nas condições atuais, para mim é mais difícil quando estou rodando o mundo. Também venho usando o pouco tempo livre para dar uma garibada na casa, que andava decadente após anos de aluguéis a outros viajantes, enquanto estamos fora. Com isso, tenho tido um prazer enorme em ficar por aqui. E estou muito grata por poder passar a quarentena de forma tão confortável e com saúde. Penso nisso cada vez que escuto uma salva de palmas aos pacientes que recebem alta no Hospital Clinic, o maior da Catalunha, justo em frente ao meu prédio.

O “cativeiro” certamente está sendo mais desafiador para pais com filhos especiais, quem vive em situação precária, depressivos, mulheres que sofrem violência de gênero e muitas outras pessoas. Os serviços de apoio psicológico on-line, tanto aqui como no Brasil, não estão dando conta do recado. Um exemplo: ao oferecer ajuda grátis, o instituto carioca A Chave da Questão recebeu mais de um milhão de acessos em 72 horas, colapsando o seu sistema informático.

O ‘cativeiro’ certamente está sendo mais desafiador para pais com filhos
especiais, quem vive em situação precária, depressivos, mulheres que sofrem violência de gênero e outras pessoas

Desde que foi decretado o estado de emergência na Espanha, todo o comércio está fechado, com exceção de farmácias, óticas, lojas de materiais relacionados à saúde, supermercados, lojas de comida/bebida, lavanderias e tabacarias. Em 30 de março, o governo endureceu ainda mais as medidas de isolamento, suspendendo atividades como a construção civil ou a indústria siderúrgica. Enquanto durar a quarentena (que, provavelmente, será novamente prorrogada por mais duas semanas, além da data final atual, de 11 de abril), só podemos sair para comprar comida ou remédio, além de cuidar de pessoas doentes/dependentes e passear com o cachorro. Quem tem uma profissão considerada essencial, precisa preencher um formulário para circular, justificando o motivo do deslocamento. Compras on-line e delivery de comida estão acontecendo no modo “sem contato”: o pacote é deixado na porta ou no elevador.

Em 21 dias de reclusão, saí apenas duas vezes, para comprar alimentos. A maioria dos que vi pelo caminho estavam de máscara – muita gente tem se virado para fabricar a sua em casa, já que estão esgotadas nas farmácias. Ao entrar no supermercado, fui obrigada a limpar as mãos e o carrinho com álcool, recebi um par de luvas de plástico e observei como as pessoas ao redor preocupavam-se em manter a distância recomendada, tanto na fila do caixa como diante as prateleiras.

Passada a correria dos primeiros dias, a compra de mantimentos voltou a funcionar com relativa normalidade. Até a guerra pelo papel higiênico atendeu ao apelo de cessar-fogo. As tendências de consumo atuais parecem mais coerentes com nossa condição de confinados. Segundo dados da ASEDAS (Associação de Empresas de Supermercados), a procura por cerveja na segunda semana de quarentena aumentou em 77,65%, enquanto a sede de vinho subiu em 67,7%. Os espanhóis também estão devorando azeitonas (+93,82), chocolate (+79,04%), sorvete (+76,19), batata frita (87,13%) e, ao que tudo indica, bolos, já que a venda de farinha saltou 196%.

Caminhando pelas ruas praticamente vazias, tenho a impressão de que a maioria dos espanhóis está respeitando a quarentena. Mas os noticiários não cansam de repercutir as multas aplicadas aos rebeldes, que podem ser de 601 a 30 mil euros. Isso se deve, em partes, à proibição de praticar esportes na rua (ao contrário do que acontece na França e em Portugal, por exemplo). Assim como para muita gente, o não poder vem me fazendo querer, mais do que nunca, experimentar a sensação de liberdade – palavra em quarentena – de fazer exercícios ao ar livre. Mas vou resolvendo isso em casa, mesmo me sentindo um pouco ridícula ao saltar na frente de uma tela. Caso esqueça de cancelar parte das assinaturas de apps de atividades físicas até o fim do período grátis, terei que colocar mais esse ônus na conta do covid-19.

Adriana Setti vive em Barcelona, mas passa boa parte do ano viajando e escrevendo para plataformas como UOL, The Summer Hunter e seu blog Achados, na revista Viagem e Turismo.

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